sexta-feira, 21 de março de 2008

O viciado


Os pais estavam muito preocupados. Não sabiam como agir diante do filho que, nos últimos três meses, havia alterado toda sua rotina. Assim que chegava da escola, almoçava rapidamente e, ato contínuo, saía de casa, sem dizer para onde ia. Voltava ao cair da tarde e, nem bem entrava, trancava-se no quarto. Não jantava. Não compartilhava, não conversava. Sequer assistia televisão com a família, o que era quase um ritual após o jantar.

Estava viciado, tudo levava a crer. Mas não havia indícios. Não havia novas companhias. O quarto sempre estava arrumado, sem odores diferentes. Também não usava adereços de nenhum tipo, não se tatuara, não cortara o cabelo em estilo moderno, enfim, nada. Que droga seria essa, pensou o pai? Não sei, não sei, disse a mãe, quase em desespero. Vamos procurar um especialista, precisamos conversar com alguém que já tenha passado por isso, disse o pai. Sim, vamos, concordou a mãe.

Procuraram um psicanalista indicado por um parente. Profissional renomado, com as melhores referências. Fez uma série de recomendações e, depois de cobrar seus honorários, os despediu, desejando-lhes boa sorte e retorno após um mês. Ou que telefonassem antes, caso houvesse alguma urgência.

Mas uma coisa intrigava o pai. De acordo com as descrições feitas, o filho deveria ter se tornado agressivo, com expressão alterada, olhos vermelhos, falando gírias. Mas isso não acontecera. Curiosamente, se tornara mais silencioso no andar, no abrir e fechar portas. Parecia não querer ser notado. E o rosto, que ele procurava manter sempre baixo, estava mais viçoso do que antes. Que droga será que inventaram desta vez, meu Deus, disse o pai. E a mãe rompia em choro.

O pai resolveu apelar. Não professava qualquer religião, mas acreditava vagamente em alguma coisa além do que seus sentidos e raciocínio lhe mostravam, e que, na falta de melhor definição, chamava de Deus. Hoje à noite vamos orar, disse à esposa. De olhos inchados, a mulher perguntou, Mas onde e como? Vamos à igreja, a um centro espírita? Não, vamos ficar aqui em casa mesmo, em nosso quarto, e rezamos do nosso jeito. Vamos tentar conversar com Deus. Está bem, concordou a esposa.

Depois que os ruídos na cidade diminuíram, trancaram-se, acenderam uma vela e começaram a falar no vazio, como se Deus fosse uma terceira pessoa em seu quarto. Disseram que eram lutadores, honestos e que, apesar de seus erros e fraquezas, não eram piores do que ninguém. Pediam orientação. Desculparam-se por só se lembrarem d’Ele nessa hora. Prometeram que, se tivessem resultado, se tornariam melhores devotos. Não ouviram nada, não sentiram nada, mas o pai teve uma idéia que não lhe ocorrera antes: conversar com o filho.

O pai precisou de alguns dias para preparar as palavras certas, para ajustar seu discurso, de forma a mostrar-se sábio, com o objetivo de atrair o filho e não afugentá-lo. Finalmente estava pronto. Numa ocasião em que o rapaz se encontrava trancado com a luz acesa fazia umas duas horas, o pai bateu em sua porta. O filho respondeu, Sim? Podemos conversar?, disse o pai. Só um momento, disse o filho. E abriu, timidamente, a porta. Posso entrar? Um segundo, disse o rapaz. Depois de uns cinco minutos, abriu toda a porta. O pai entrou. Notou que a cama estava com os lençóis amassados, como se o filho estivesse deitado.

De início um pouco trêmulo, o pai começou a falar. Depois, à medida em que o filho o ouvia sem se manifestar, ganhou confiança, e passou a falar sem balbuciar, de forma articulada e fluída. O filho o fitava, sereno. O pai confessou sua preocupação, seus medos, falou das desgraças do mundo. Chegou ao ponto. Suspeitava que o filho estivesse envolvido com alguma droga. Ele mudara seu comportamento, estava mais introspectivo, pouco conversava, só queria saber de ficar trancado. O jovem escutava, escutava e escutava, até que, de repente, começou a sorrir. Está bem, pai. Levantou então o lençol que cobria a beirada da cama e puxou, de debaixo dela, uma mochila. Abriu-a. Tirou de dentro “Adolphe”, de Benjamim Constant; “Os irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoievski; “Viagem ao azul”, de Ludwig Tieck e “A morte”, de Maurice Maeterlinck. Tirou também um conjunto de folhas escritas com sua letra. Pegou uma que parecia ser a mais velha de todas. Entregou-a ao pai:

palavras queimadas.
assim eram as formas
que subiam da manhã
como a névoa que se levanta
ao pé da montanha.
pareciam frias,
mas incensavam o ar;
pareciam brancas,
mas ardiam na garganta.
eram palavras queimadas
que saíam de dentro da manhã
como se o sol saísse de um
banho quente.
as procurávamos entre os vapores,
ensejávamos encontrá-las
brilhantes, torneadas,
só divisávamos o fumo que se elevava
do espaço vazio.
eram palavras queimadas.
não deixaram cinzas
gritos
saudades
nem o desejo de reerguer nada.
eram palavras queimadas.


Leitura recomendada (clique sobre o título para baixar o arquivo na íntegra)

Los libros en mi vida - Henry Miller