sábado, 28 de julho de 2007

Grandes Seres Humanos


O blog Liberdade de Expressão e Cultura inaugura uma seção periódica, destinada a apresentar passagens da vida de homens e mulheres que marcaram o mundo. “Grandes Seres Humanos” trará relatos biográficos de pessoas de reconhecida estatura e integridade moral, intelectual e humana, cuja vida e obra sejam indissociáveis, influenciando beneficamente gerações ao longo dos tempos.

Rabia al-Adawiya

Considerada maior santa sufi [1] dentre as mulheres no Islã, Rabia al-Adawiya nasceu em data desconhecida, em berço humilde e, ainda menina, após a morte dos pais, foi capturada e vendida como escrava. Libertada por seu senhor, que reconheceu nela os sinais da santidade, estabeleceu-se em Basra (cidade do atual Iraque), onde granjeou fama como amiga de Deus [2] e pregadora. A data de sua morte é duvidosa. Supõe-se que tenha ocorrido em 752 da era Cristã (ou 135 da héjira muçulmana) ou em 801 d.C. (185 d.h.).

Atribui-se a Rabia, que levou vida de celibatária, a introdução do tema do Amor Divino no misticismo muçulmano. Acredita-se que sua tumba se encontre próxima de Jerusalém.

Os escritos de Rabia al-Adawiya, bem como sua devoção a Deus e alguns de seus diálogos, reportam também a outra grande mística da tradição cristã, Santa Teresa D’Ávila [3].

Passagens da vida de Rabia al-Adawiya

Na noite em que Rabia veio ao mundo, não havia nada na casa de seu pai, que era muito pobre. Nem mesmo uma gota de óleo para untar-lhe o umbigo, nem candeeiro, sequer um trapo para cobri-la. Seu pai já tinha três filhas e Rabia foi a quarta, por isso recebeu este nome.

“Vai até o vizinho e pede-lhe uma gota de óleo para poder acender o candeeiro”, disse a esposa.

Mas o homem havia feito o juramento de que jamais pediria nada a nenhum mortal. De modo que saiu e, nem bem apoiou a mão sobre a porta do vizinho, voltou.

“Não abriram a porta”, informou.

A pobre mulher começou a soluçar amargamente. Neste estado de ansiedade, o homem colocou a cabeça entre os joelhos e adormeceu. Sonhou que via o Profeta.

“Não sofras”, disse o Profeta no sonho. “A menina que acaba de chegar ao mundo é uma rainha entre as mulheres e será minha intercessora diante de 70 mil pessoas da comunidade. Amanhã”, continuou o Profeta, “vá a Isa-e Zadan, governador de Basra. Põe num pedaço de papel o que vou dizer-te: ‘Todas as noites me dedicas cem preces e quatrocentas nas sextas à noite. Ontem foi sexta-feira e me esqueceste. Como expiação, dá a este homem quatrocentos dinares [4] obtidos legalmente’.”

O pai de Rabia acordou e começou a chorar. Levantou-se, escreveu o que o Profeta havia dito e enviou a mensagem ao governador por intermédio de um portador.

“Dêem 2 mil dinares aos pobres”, ordenou o governador ao receber o bilhete, “em sinal de gratidão ao Senhor, que lembrou-Se de mim. Dêem também quatrocentos dinares a este homem e digam-lhe: ‘Desejo que venhas para que eu possa conhecer-te. Mas não me parece correto que um homem como tu se apresente diante de mim. Seria melhor que eu fosse à tua casa para esfregar meu rosto à soleira da tua entrada. De toda forma, juro por Deus, faz-me saber acerca de qualquer coisa que necessites’.”

O homem recebeu o dinheiro e comprou todo o necessário.

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Uma noite, Rabia estava orando em seu quarto quando o cansaço a invadiu e ela adormeceu. Seu sono era tão profundo que, quando uma farpa da esteira em que dormia entrou em seu olho, fazendo-a sangrar, ela não percebeu.

Então, um ladrão entrou e roubou seu chador (lenço). Quis sair, mas o caminho se fechou. Deixou cair o chador e partiu, com o caminho aberto. Voltou a pegar a prenda e o caminho voltou a fechar-se. Mais uma vez deixou cair o chador. Fez isso por sete vezes, até ouvir uma voz que vinha de um canto do quarto: “Homem, não te arrisques a tanto. Há muito tempo que ela se encomendou a Nós. Como poderia um ladrão ter a audácia de levar seu chador? Não te arrisques a tanto. Se um amigo adormece, outro Amigo está desperto e vigia.”

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Um dia, Rabia foi às montanhas. Rapidamente foi rodeada por uma manada de cervos, cabras, pássaros e asnos selvagens que a contemplavam. De repente, chegou Hasan de Basra, que, ao ver Rabia, dirigiu-se a ela. Assim que avistaram Hasan de Basra, os animais saíram correndo, deixando Rabia a sós. Isso entristeceu Hasan.

“Por que fogem de mim e se aproximam de ti com tanta docilidade?”, perguntou Hasan.

“O que comeste hoje?”, devolveu Rabia.

“Um pouco de cebola”.

“Comes a riqueza deles”, assinalou Rabia. “Como então não fugiriam de ti?”

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Numa primavera, Rabia entrou em seu quarto e colocou a cabeça para fora da janela. Sua serva então lhe disse: “Senhora, vem para fora para ver as belezas feitas pelo Criador”.

“Melhor seria que tu entrasses”, respondeu Rabia, “e viesses ver o Criador. A contemplação do Criador é o que me ocupa, de modo que não me interessa olhar o que Ele fez”.

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Um erudito de Basra visitou Rabia quando esta se encontrava doente. Sentado junto a seu leito, o homem se dedicou a falar mal do mundo.

“Amas demais o mundo”, comentou Rabia. “Se não o amasses tanto, não farias tanta menção a ele. É sempre o comprador quem critica a mercadoria. Se tivesses terminado com o mundo, não o mencionarias nem para bem nem para o mal. Não deixas de nomeá-lo porque, como diz o provérbio, quem ama algo o menciona com freqüência”.

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Quando chegou a hora de Rabia morrer, os que estavam em seu quarto saíram e fecharam a porta. Então, ouviram uma voz que dizia: “Oh, alma em paz, volta a teu Senhor, afortunada!” Passou um instante. Nem um som se escutou vindo da habitação. Abriram a porta e encontraram Rabia morta.

Depois de sua morte, foi vista em um sonho. Perguntaram-lhe: “Como foi teu encontro com Munkir e Nakir[5]?”. Ela respondeu: “Esses jovens se aproximaram de mim e me questionaram: 'Quem é teu Senhor?' Eu respondi: 'Ide e dizei a Deus: Com tantas milhares e milhares de criaturas, Tu não esqueceste a uma velha e frágil mulher. Como eu, então, que só a Ti tenho em todo o mundo, poderia ter-Te esquecido, para que me mandasses alguém para me perguntar ‘Quem é teu Senhor’?”

Orações de Rabia al-Adawiya

Oh, Deus, concede tudo aquilo que me deste de coisas mundanas aos Teus inimigos. E tudo aquilo que me concedeste no outro mundo, dá-o aos Teus amigos, pois estar Contigo me é suficiente.

Oh, Deus, se Te venero por medo do inferno, queima-me nele; e se te venero esperando o Paraíso, exclui-me dele. Mas se Te venero por Ti mesmo, não me negues Tua eterna beleza.

Oh, Deus, todo meu propósito e meu desejo neste mundo, acima de tudo, é lembrar de Ti. Assim como, no outro mundo, entre todas as coisas que virão, é encontrar a Ti. Isso é o que vem de minha parte. Faze o que seja da Tua vontade.

Leituras recomendadas

Memorial dos Santos – Melhor obra (hagiografia) existente sobre santos muçulmanos –ou ‘amigos de Deus’, como são chamados no Islã. Foi escrita pelo mestre sufi, poeta e também santo Fariddudine Attar (autor de um dos principais livros do esoterismo islâmico, “A Conferência dos Pássaros”, editora Cultrix).

“Memorial dos Santos” biografa 72 santos islâmicos, dentre os quais Rabia al-Adawiya, de onde foram extraídas as passagens mencionadas no Liberdade de Expressão e Cultura. Título da obra em espanhol: “72 Santos Sufis”, de Farid ud din Attar, editorial Hastinapura, impresso na Argentina.

Poemas de Rabia (em inglês).

Sufismo (resumo, em espanhol)

Dicionário breve de termos citados

[1] Sufis – Termo originário do árabe ‘suf’, ou lã, em português. Há várias versões sobre a origem dos sufis, mas há consenso entre as 'turuq' (plural de 'tariqa' ou 'irmandades', no islamismo esotérico) que o sufismo começa com o próprio profeta Muhammad (Maomé), que teria iniciado dois de seus companheiros no caminho do ‘coração’, Abu Bakr e Ali. A palavra sufi remeteria também a um grupo de pessoas piedosas e pobres, que, vestidas de lã, acompanhariam o profeta.

Entre os sinais que caracterizam os sufis estão: a dedicação e o amor a Deus, a obediência ao Alcorão, à shariah (Lei islâmica) e a permanente lembrança de Deus, que é expressa publicamente através do ritual místico conhecido como Zikr (recordação). Outros sinais são o desapego às coisas e riquezas do mundo material; e o amor e a caridade ao próximo. Em árabe, os sufis também são chamados de faquir (pobre), cujo plural é ‘fuqara’. Em persa, são conhecidos como dervixes (derwishs), palavra que também significa pobre.

Há várias fraternidades sufis. Dentre as mais conhecidas na atualidade estão: Naqshbandi, Qadiri, Iachulutia, Allawiya e Halveti-Jerrahi.

[2] Amigo de Deus – Eulialá (amigo de Allah). É como, no Islã, são chamadas as pessoas que vivem exclusivamente para (fazer a vontade de) Deus. A frase é oriunda do patriarca das três grandes religiões monoteístas, Abraão, que era conhecido como “amigo de Deus”.

[3] Dinar – Moeda persa.

[4] Trecho de um poema de Santa Tereza D’Ávila:

-Alma, o que queres de Mim?
-Deus meu, nada, além de ver-Te.
-E o que mais temes em ti?
-O que mais temo é perder-Te.

[5] Munkir e Nakir - Segunda a tradição islâmica, são os anjos que, após a morte, aproximam-se da alma da pessoa falecida e lhe perguntam: "Quem foi teu Senhor?". Se a pessoa responde que seu Senhor foi Deus e menciona o nome do profeta e religião que seguiu, será conduzida para um bom lugar, à espera do Dia do Juízo Final. Se foi uma pessoa que viveu sem Deus, de forma licenciosa e apenas para as coisas do mundo, será conduzida ao Inferno.

domingo, 22 de julho de 2007

Três poemas e pinturas de Ismael Nery


Confissão

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável
Crescente.
Talvez seja esta a minha diferença de Deus
que tem fome e sede de mim,
implacável,
crescente,
eterna
— De mim, que me desprezo e me acredito um nada.


Oração

Meus Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo?
Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,
Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio,
Neste corpo que gasta todas as minhas forças
Para tentar viver sem rídiculo tudo que sou.
— Já estou cansado de tantas transformações inúteis.

Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação,
Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas.
— Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezes
irreconhecível a minha própria mulher e a meus filhos
a meus raros amigos e a mim mesmo?

— Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo!
Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas
Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto.
Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amém!
Poema para Ela

Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.
Ismael Nery - pintor, poeta e filósofo

Primeiro e maior pintor surrealista brasileiro, Ismael Nery (1900-1934) nasceu em Belém do Pará e morreu no Rio de Janeiro, onde viveu desde os nove anos. Entre 1915 e 1920, cursou no Rio a Escola Nacional de Belas Artes. Vai a Paris e conhece Pablo Picasso e Fernand Léger, retornando em 1921 ao Brasil. Neste ano, conhece e se torna melhor amigo do poeta Murilo Mendes, de quem seria mentor espiritual e intelectual.

Em 1927, em outra viagem à Europa, Nery trava contato com integrantes do movimento surrealista, dentre os quais Marc Chagall. A partir deste encontro, que marcaria definitivamente sua obra, aprofunda a visão onírica em seus quadros e desenhos, recebendo também influências de Giorgio de Chirico e outros artistas ligados ao surrealismo. Em 1934, morre precocemente, vitimado pela tuberculose.

Espiritualista e criador do movimento neocristão batizado como ‘essencialismo’, Nery foi enterrado vestindo o hábito dos adeptos de São Francisco de Assis, de quem era profundo devoto. Dele, o crítico Mário Pedrosa disse: “"Era idéia em tudo, bailarino, pintor, arquiteto, poeta e filósofo, moralista e reformador social. Foi um artista total. Daí ter vivido tudo em potencialidades".

Na poesia, Ismael Nery foi considerado um poeta bissexto (autor que escreve eventualmente), mas a qualidade de seus poemas valeu-lhe um lugar na “Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos”, organizada por Manuel Bandeira em 1946.

Sites

Desenhos no MAC-USP

Quadros em leilão

Leituras

Recordações de Ismael Nery, de Murilo Mendes, Edusp

História da Arte