sábado, 20 de outubro de 2007

Poesia do Ser - Uma breve antologia

É comum associar o ato de escrever poemas à capacidade de expressar sentimentos ou ao idealismo -"fulano de tal é um poeta", diz-se daquele que acredita em seus ideais, sem temer o ridículo. Outra abordagem, de cunho acadêmico, vincula a poesia a uma atividade cerebral, racional, que pode ser planejada e executada, assim como um projeto de arquitetura pode vir a tornar-se uma construção.

Entre estas duas visões, ou para além de ambas, há uma outra, que considera a poesia como um momento de revelação. Por este enfoque, a poesia é vista como um dos mais elevados meios de exploração do mundo interno e de autoconhecimento do ser humano. No entanto, difere do processo religioso, em que a iluminação e a ascese surgem por meio da contemplação, da oração ou da meditação, pois na poesia o despertar ocorre através do belo.

Basta ler um trecho da "Ode a uma urna grega", do poeta inglês John Keats (1795-1821), para compreender a irrupção do belo:

"As melodias ouvidas são doces, mas ainda mais
doces são as não ouvidas;
suaves flautas, soai não para os sentidos,
mas para o espírito.
Tocai canções silenciosas
e ainda mais desconhecidas."

No poema de Keats, o belo representa a manifestação do mundo invísivel dentro do mundo sensível. Há uma música mais essencial que habita a própria música e a alma é convidada a ouvi-la. A partir deste ponto ("soai não para os sentidos, mas para o espírito"), o poema passa também a ser elaborado no interior daquele que o lê, abrindo-se duas possibilidades: deter-se no prazer intelectual da leitura, que se encerra com a sugestão destas “canções silenciosas e ainda mais desconhecidas”, ou avançar rumo ao próprio ser, de forma a escutar dentro de si mesmo estas “melodias (...) ainda (...) não ouvidas”.

Como John Keats, há poetas de todas as épocas, línguas e tradições, que suscitam estados de alma e de consciência elevados no leitor, tornando-o cúmplice do processo criativo. Quantos já não tiveram o rumo de suas vidas alterado após a leitura de um verso, um poema, pelo encontro com uma obra inesquecível? Quantos não despertaram ou não sentiram o frenesi que a leitura de um verso pode causar?

Há poetas que são verdadeiros ourives da palavra e do idioma que manejam, capazes de infundir em seus poemas o resultado de suas experiências internas e externas, tornando-as universais e atemporais. A esse tipo de poesia, fundada no íntimo, dá-se o nome de poesia ou poética do ser.

A poesia do ser é a suspension of desbelief (suspensão da descrença e dos preconceitos) de que falava outro grande poeta inglês, Samuel Taylor Coleridge. É a abertura plena do interior ao Todo, permitindo a compreensão em profundidade do amor, morte, solidão, angústia, mar, natureza, alegria, paisagens, silêncio, do encontro consigo mesmo. A poesia do ser não apenas torna visível o invisível, como, dir-se-ia, também prepara os olhos para enxergar o que surge diante de si. Ela elabora mundos dentro ou além do mundo e os povoa.

Raramente a poesia do ser é dramática. Antes, movimenta-se em silêncio, que é também o habitat do espírito reflexivo e de toda revelação. Ela é transcendente e, se o cotidiano lhe serve como matéria-prima, é apenas para ser superado.

Onde a filosofia e a religião falharam em tornar o ser humano mais consciente de seu papel no universo, pode-se dizer que a poesia que nasce do íntimo sempre foi e será bem sucedida.

Da Antologia

A breve antologia poética ora apresentada, com algumas exceções (casos de Miguel Hernandez e Pablo Neruda), contempla autores ainda pouco conhecidos do leitor brasileiro em geral. A ausência de poetas como Rainer Maria Rilke, Jalaludin Rumi e Cecília Meirelles é deliberada nesta primeira seleção de poemas.

Antologia poética

Miguel Hernandez
(Espanha, 1910-1942)

Vivo na sombra, cheio de luz. Existe o dia?
Aqui é minha tumba ou minha abóbada materna?
Sinto este pulsar contra minha pele como uma fria
laje que germinasse quente, rubra e terna.

É possível que eu não tenha nascido ainda,
ou que sempre tenha estado morto. A sombra me governa.
Se isso é viver, então não sei como morrer seria,
nem sei o que persigo nesta busca tão eterna.

Prisioneiro em um traje, sinto que desejo
despir-me, livrar-me daquilo que não sou
eu e que torna turvo e distante o infinito.

Mas a teia negra, distante, vai comigo
sombra a sombra, contra a sombra até que se desfaça
diante da vida nua, crua e crescente deste nada.

Manuel Altolaguirre
(Espanha, 1905-1959)

Para chegar à luz

Dizem que sou um anjo
e, degrau a degrau,
para chegar à luz
tenho que usar as pernas.
Cansado de subir, às vezes rodo
(talvez sejam as pregas de minha túnica),
mas um anjo rodando não é um anjo
se não tem a honra de chegar ao abismo.
E o que encontrei em minha maior queda
era brando, brilhante;
lembro-me de seu perfume,
seu deleite malsão.
Despertei e agora quero
encontrar a escada,
para subir sem asas
pouco a pouco
rumo à minha morte.

Odyseas Elitys (Grécia, 1991-1996)

Ainda é cedo neste mundo, me ouves?, os monstros ainda não foram domados, me ouves?,
meu sangue perdido e desejado, me ouves?, punhal que corre como carneiro pelos céus
e quebra os galhos das estrelas, me ouves?

Sou eu, me ouves?
Te amo, me ouves?
Te tenho, te levo, te visto
com o branco traje nupcial de Ofélia, me ouves?

Onde me deixas, onde vais e quem, me ouves?, te leva pela mão por cima dos dilúvios
enormes lianas e lava de vulcões?

Chegará o dia, me ouves?, em que nos enterrem e milhares de anos depois, me ouves?, nos converterão em rochas brilhantes, me ouves?
Para que sobre elas paire a crueldade, me ouves?, humana, e em cinco mil aninhos nos atirarão, me ouves?, às águas, um a um, me ouves?

Conto meus seixos amargos, me ouves?
O tempo é uma grande igreja, me ouves?, onde às vezes nas imagens, me ouves?, dos santos
surgem lágrimas verdadeiras, me ouves?

E os sinos abrem nos céus, me ouves?, uma passagem profunda que me permite atravessar.
Aguardam os anjos com círios e salmos fúnebres.
Não vou a parte alguma, me ouves?, ou nenhum ou os dois juntos, me ouves?

Esta flor da tormenta e, me ouves, do amor,
de uma vez para sempre a decepamos, me ouves?, e não voltará a florescer, me ouves, em outra terra, em outra estrela, me ouves?

Não existe o solo, não existe sequer o ar, me ouves?, que tocávamos, me ouves?
E nenhum jardineiro foi tão afortunado em outros tempos, depois de tanto inverno e tantos ventos frios, me ouves?, que nasça uma flor, só nós, me ouves?, levantamos toda uma ilha, me ouves?, com grutas e cabos e inacessíveis recantos florescidos
Ouves, ouves?
Quem fala ás águas e quem chora, ouves?
Quem procura o outro, quem grita, ouves?
Sou eu que grito, sou eu que choro, me ouves?Te amo, te amo, me ouves?

Cintio Vitier (Cuba, 1921- )

Não são minhas as palavras nem as coisas.
Elas têm suas festas, seus assuntos
que não me competem,
espero seus sinais como o fogo
que está em meus olhos com obscura indiferença.

Não são meus o tempo nem o espaço
(e muito menos a matéria).
Eles entram e saem como pássaros
pelas janelas sem portas de minha casa.
Se a atravessasse, sairia em outra sala:
quem fala sou eu, mas nada entendo.

Talvez minha vida seja uma hipótese
que alguém se cansou de imaginar
um conto interrompido para sempre.

Estou apenas escutando estes fantasmas
que no crepúsculo vêm ver-me,
ansiosos de que eu os incorpore:
tu te negarias, sofrerias, te desvanecerias?
Não é meu, lhes respondo, o olhar,
negar seria esplêndido, sofrer, interminável,
estas façanhas não me pertencem.

Mas de repente não posso dissuadí-los,
porque já não ouço minha solidão
e estou cheio, saciado, como o ar,
de meu próprio vazio ressonante.

E continuo dizendo a mim mesmo que não tenho
nenhuma idéia de quem sou,
onde vivo, nem quando, nem por quê.

Alguém fala sem fim em outra sala.
Nada me serve, então. Não estou só.

Estas palavras ficam de fora, incompreensíveis,
como os seixos da praia.

Lucian Blaga (Romênia, 1895-1961)

Há tanto silêncio ao meu redor
que quase consigo ouvir
o luar batendo na janela

Em meu peito
nasce uma voz estranha
uma cadência triste que não me pertence
dizem que os antepassados mortos antes do tempo
ainda com sangue jovem em suas veias
com sangue cheio de paixões
com o sol vivo de amores
vêm
vêm para terminar de viver em nós
sua vida ainda não vivida.

Há tanto silêncio ao meu redor
que quase consigo ouvir
o luar batendo na janela

Quem sabe, alma minha, em que peito cantarás tu também
além destes séculos
que cordas de silêncio vibrarás
em que harpa de trevas afogarás tuas lembranças
quebrarás tua alegria de viver

Quem sabe?
Quem sabe?

Adônis (Síria, 1930- )

Desejo me ajoelhar.
Quero rezar à coruja de asas quebradas.
À brasa, aos ventos.
À morte.
À peste.
Queimar no incenso meus dias brancos,
meus cantos,
meu caderno.
A tinta e o tinteiro.
Rezar a qualquer coisa
que ignore o que seja rezar.

Pablo Neruda (Chile, 1904-1973)

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus costumes
com tua cor e tua guitarra
como estão juntos os países
nas lições escolares
e dois vilarejos se confundem
e há um rio perto de um rio
e dois vulcões crescem juntos.

Perto de ti é perto de mim
e longe de tudo é tua ausência
e tem cor de barro a lua
na noite do terremoto
quando no terror da terra
juntam-se todas as raízes
e ouve-se soar o silêncio
com a música do espanto.
O medo é também um caminho.
E entre suas pavorosas pedras
Pode caminhar com quatro pés
e quatro lábios a ternura.

Porque sem sair do presente
que é um delicado anel
tocamos a areia de ontem
e no mar ensina o amor
um repetido arrebatamento.

Roberto Juarroz (Argentina, 1925-1995)

Mais cedo ou mais tarde
deve-se pôr a mão no fogo.

Talvez a mão possa
aprender antes a ser chama
ou talvez a persuadir a chama
para que tome a forma de uma mão.

E se ambas as coisas falharem,
talvez possam a mão e a chama
resolver-se nos átomos já livres
de uma diferente claridade.

Ou talvez, simplesmente,
aquecer um pouco mais o universo.

Aram Rochert (Madagascar, 1950- )

as mãos talvez nunca mais se encontrem

tão próximas
tão no mesmo corpo
tão na mesma alma
mas incapazes de bater palmas

7 comentários:

Anônimo disse...

Amigas e amigos,

talvez o post que mais trabalho me deu até hoje. Mas valeu a pena.

Abraço fraterno

regina disse...

Jakob,
Uma coletênea feita com tanto bom gosto e critério só pode ter dado muito trabalho.
Mas não negue o prazer que deve ter sentido, pois com certeza leu muito mais para uma seleção tã o boa.
Obrigada por me deixar usufruir de seu trabalho e economizar meu tempo( Já vem pronto) É por esse e outros motivos que não saio daqui. (do blog)
Muito obrigada.

Anônimo disse...

Regina,

como sempre, você é muito gentil. Há muitos poemas que, gradativamente, postaremos no blog. Coloquei apenas estes, porque fiquei receoso de tornar a leitura cansativa. Mas há muito mais já traduzido.

Com relação ao que senti ao escrever o post e selecionar o material, mais do que prazer propriamente dito, a sensação foi a de algo que vai sendo elaborado internamente, como se mexessemos com barro e fossemos moldando, moldando, moldando, até começar a ganhar forma, e recebermos diretamente na cara a luz daquilo que se aproxima.

Abraço fraterno

Anônimo disse...

Jakob

Lendo esses belos poemas que compilou, percebo alguma coisa daquele algo a mais que falou, parecem dizer algo, que não sei bem o que, dão um nó no cérebro, liberando o lado inconsistente da imaginação.

Dizem que a arte ajuda a equilibrar os lados do cérebro, ajudando o robô pensante a ser gente.


E a poesia é perfeita para isso, por ser escrita, utiliza as mesmas armas do pensamento racional, as palavras que, quando carregadas de simbolismo, ampliam e revelam um significado despertado em nossa psiquê, a alma ou subconsciente.

Algo que sentimos mas não definimos.

É bom viajar fora dos trilhos de vez em quando, por isso que gosto de ouvir e fazer música, saio do racional e entro num mundo mágico, fora da bitola lógica. É uma forma de libertação.

Abração

Anônimo disse...

Rogério,

isso que chamo de "poesia do ser" age exatamente como você diz. Este "não sei quê" do qual você fala, é exatamente esta necessidade interior de criar ou de preparar a capacidade cognitiva a entender o que está diante de si. E quando falo em capacidade cognitiva não estou falando em pensamento, que é insuficiente para este tipo de compreensão. Falo desta sensação interna, que chega a ser incômoda e desconfortável, que exige que algo dentro de si mesmo seja elaborado para conseguir ver o que lhe está sendo mostrado.

Esta sensação você tem quando lê também, pela primeira vez, os livros de Rudolf Steiner. Vamos dizer que é preciso abrir o olho interior, ou despertar um sentido que mora dentro do sentido, para chegar à compreensão do que um poema destes tenta dizer. Pois eles não falam à mente, mas ao ser, que não apenas reúne todas as capacidades cognitivas conhecidas, como outras, que em geral vivem adormecidas em nós.

Por isso eu comparei, muito brevemente, este tipo de poesia a um tipo de iluminação. Como você deve saber, os japoneses clássicos tinham um tipo de poesia que só podia ser feita por grandes mestres espirituais. Foi batizada de haicai. Hoje, alguns tolos acham que fazer haicai é escrever três versos de 17 silabas totais, como se pudesse ser elaborado mentalmente. Mas isso é apenas a manifestação externa e material de um processo interno muito, mas muito profundo.

Abraço fraterno

regina disse...

Jakob,
Gostaria de avisar-lhe que foi citado hoje no blog do Guterman com muita elegância e carinho. Como sei que está muito ocupado,o aviso é sómente para que você dê uma olhadinha.
Gente fina é outra coisa. E você realmente faz falta lá .

Anônimo disse...

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