segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

PAI


Era uma vez um menino criado apenas pela mãe. Tão logo começou a ganhar entendimento das coisas, sua mãe contou-lhe que, pouco antes de nascer, o pai tivera de partir em uma longa viagem, sem prazo para retornar. Mas, apesar da distância, prometera jamais deixar de acompanhar o progresso do filho e sempre encontraria uma forma de saber como ele estava.

Dessa forma, o menino foi educado. Embora não tivesse nenhuma fotografia do pai e a mãe se recusasse a descrevê-lo fisicamente, era como se estivesse presente em tudo o que se dizia que a criança deveria ou não fazer. Quando o menino se empenhava nos estudos, ou quando era solícito para com outras pessoas, a mãe comentava: “Seu pai ficará feliz em saber do seu comportamento”. Por outro lado, quando o pequeno era traquinas ou dava mostras de superioridade perante os outros, novamente a sombra do pai era projetada sobre ele: “Vou contar o que você andou aprontando para o seu pai. Tenho certeza de que ele não vai gostar nada de saber o que você anda fazendo”.

E assim foi. No geral, o menino, que já ultrapassara a adolescência e se convertera em um jovem homem, fora obediente à maior parte das instruções transmitidas pela mãe, que falecera no início da juventude do rapaz. Crescera procurando ser digno, verdadeiro e bom, em resumo, seguira os conselhos que o pai lhe deixara.

No entanto, com a maturidade, o agora homem deixou de se satisfazer com a história do pai que, de algum local distante, vigiava seus passos. Quis saber mais. Aonde estaria? Que trabalho poderia ser tão importante que, em cerca de vinte anos, não lhe permitira fazer sequer uma visita ao filho? É certo que nada jamais faltara a ele. Fora educado da melhor maneira, com os melhores instrutores, e se saíra bem. Contudo, hoje ele compreendia que nada daquilo era realmente valioso se não conhecesse o responsável direto por sua vida e sucesso, que lhe ensinara a ser senhor de si mesmo.

Sem ter a quem recorrer, pois não tinha quaisquer parentes onde então vivia, pensou em usar uma foto de si mesmo como pista. Sim, certamente devia ter herdado os traços paternos. Achava-se muito diferente da mãe, portanto, deveria assemelhar-se ao pai.

Por onde começar?, perguntou-se. Para onde ir? Ao mesmo tempo, já era um homem de responsabilidades, tinha os negócios que a mãe lhe legara para cuidar, além de estar apaixonado por uma bela moça com quem prometera se casar. Qualquer tipo de busca envolveria o abandono de uma situação estável na qual, paradoxalmente, o próprio pai o colocara. Achou curioso que, no meio social em que vivia, todos o elogiavam por sua família, pelo pai dedicado que suprira todas suas necessidades materiais. Ele, contudo, estava só no mundo. E percebia isso cada vez mais claramente.

Naquela noite teve um sonho. Viu-se saltando do interior de um navio luxuoso e adornado, repleto de gente, para dentro do mar silencioso, sem uma bóia ou pedaço de material flutuante em que se agarrar. Apesar de sentir medo durante o salto, no momento do choque do corpo com a água, uma felicidade única o invadiu, compensando os riscos do que viesse depois.

Na manhã seguinte, assim como o pai fizera consigo, partiu, deixando instruções a respeito da condução dos negócios e uma carta emocionada à noiva, garantindo-lhe fidelidade e pedindo perdão pela atitude inevitável.

Sem rumo, levando consigo apenas uma foto de si mesmo, a roupa do corpo e algum dinheiro, tomou um trem desconhecendo para onde deveria ir. Olhando para fora do trem em movimento, a paisagem não representava mais do que um aglomerado de imagens que se sucediam, árvores, postes, casas, pessoas, animais, e depois a escuridão que a tudo afogava, alternada com as poucas luzes que insistiam em não apagar.

Adormeceu. Ao amanhecer, chegou a uma cidade um pouco menor que a sua. Ele sabia que não encontraria seu pai por lá –embora, quem sabe, ele pudesse estar ali, por que não?. Resolveu deter-se naquele lugar. Confuso mas determinado, sentou-se em um banco de praça para decidir o que fazer. Ficaria ali por algum tempo, até ter uma idéia mais clara para onde seguir. Ao menos, pensava, ninguém mais diria que seu pai o provia ou zelava por ele onde quer que estivesse. Ali era um estranho. Pela primeira vez, sentiria a ausência completa do pai.

Passaram-se meses, o jovem tornou-se empregado em um escritório local e, por seu empenho, dedicação e honestidade, rapidamente granjeou a admiração alheia, ascendendo a um novo cargo. Outra vez, encontrava-se em situação estável, havendo várias mulheres que se insinuavam para ele. Certo dia em que o fogo da juventude queimou-lhe do ventre à garganta por uma bela moça que o fitava com lascívia, um lampejo atravessou sua mente: Em que ele diferia do jovem que saíra de sua cidade natal? Voltara à situação anterior, só que sem o pai. Lembrou-se que o motivo que o levara até ali não era a admiração das outras pessoas ou o desejo das mulheres, mas encontrar o próprio pai. Mas encontrá-lo onde? Quem garante que por todas as cidades por onde eu passe não acontecerá a mesma coisa? Não estarei ficando louco? Por que procurar por meu pai, no final das contas? Por que não desfrutar da vida como ela é, constituir família e esquecer definitivamente alguém que jamais me procurou enquanto estive à sua disposição, dedicando-me a agrada-lo?

No entanto, a saudade e o desejo de encontrar o pai sobrepujavam qualquer outro sentimento dentro de si. Não tinha qualquer outra ambição. Não aprendera o valor das coisas materiais além de seu significado comum; não sentia afã, apego por nada. A vida, tal como a via vivida pelos outros, não lhe interessava. As pequenas batalhas do dia-a-dia, a luta por dinheiro, por reconhecimento, por sexo, por prazer, tudo lhe parecia distante como se estivesse no alto de uma montanha e enxergasse, lá embaixo, as pessoas pequenas e certas de que suas vidas e seus problemas eram os assuntos mais importantes do universo, sem a noção da grandeza que as rodeava. No entanto, acima da montanha havia o céu, cortado por nuvens douradas e avermelhadas, imerso no silêncio.

Outra vez decidira partir. Dessa vez, sem despedir-se ou deixar correspondência. Iria para onde, meu Deus?, pensou. Para onde pudesse refletir sobre o melhor lugar para procurar o pai. Perambulou por cidades e vilas minúsculas junto ao campo. Bem apessoado e vestido, educado e cortês, não demorava a conseguir trabalho, embora, mais do que na ocasião anterior, despertasse a curiosidade da gente do campo. Todos queriam saber quem era, o que fazia por ali, por que –não o diziam diretamente, mas transpareciam a dúvida- resolvera misturar-se com aquelas pessoas simples, em locais pobres e sem perspectivas. O que esperava achar por ali? Seria um enganador, interessado em lesar pessoas humildes e sem cultura?

Da primeira vez, ninguém perguntou quem ele era. Agora, acontecia o contrário. E como não obtivessem resposta alguma que os satisfizesse, começaram a criar lendas e histórias a seu respeito. Percebeu, porém, que pobres e ricos, campesinos ou citadinos, todos se encontravam num ponto: não conseguiam entender, nem acreditar, que ele pudesse perder seu tempo procurando o pai pelo mundo. Muitos invejavam seu porte, educação e facilidade para obter favores e conquistar a admiração alheia. Outros gostavam sinceramente dele, por sua nobreza e delicadeza no agir e falar. Uma minoria o temia –quem seria ele, o que quer de nós?, pensavam. Estavam todos, sem exceção, engalfinhados na luta pela vida, que, na maior parte das vezes, não acontecia com o corpo, no trabalho, mas dentro de si mesmos, através das preocupações, expectativas e ilusões. Não tinham espaço para mais nada a não ser pensar em ganhar, acumular, enriquecer, proteger-se, destacar-se, dormir e voltar a fazer a mesma coisa no dia seguinte.

O pai voltou-lhe à mente e sua suposta imagem fincou-se em seu coração, como um destino. Era sua razão de viver. O que fora feito dele? E se não encontrasse o pai, o que aconteceria? Não conseguia viver naquele mundo que parecia um turbilhão, mas, ao mesmo tempo, não achara o pai. Estaria condenado a perambular? Nada o prendia àquela cidade, àquele povo. Nada o prendia a lugar algum. Novamente, resolvera partir. Tomara, porém, uma nova decisão. Não sairia dali enquanto não recebesse um sinal da localização de seu pai ou de que fim levara.

Ocorreu-lhe então que deveria tentar lembrar-se do pai o máximo possível, tê-lo em mente a cada instante. Recordou-se que, em seus primeiros anos, era a mãe quem sempre lhe falava do pai, instando-o a ser o melhor possível para alegrar aquele que o amava e zelava pelo seu bem-estar. Agora seria diferente. Ele se lembraria do pai espontaneamente. Pai, quero saber onde você está, tenho certeza que não está longe. Amo-o, será que não sente isso? Por favor, não quero morrer, mas também não conseguirei viver muito mais tempo dessa forma. Ajude-me a chegar até você, pedia em seu interior.

Na mesma noite, teve um sonho. Viu uma porta se abrindo e uma mão, semioculta sob a manga de um manto, se esgueirava em sua direção, chamando-o para entrar. Ele o fazia e, no instante seguinte, encontrava-se diante de alguém cujo rosto não podia ser visto. Ao despertar, identificou o aposento do sonho com seu antigo quarto.

Sem saber exatamente porquê, resolveu voltar para casa. Alguns anos já se haviam passado, usava barba, sua pele ficara tostada pela vida ao ar livre. Não seria reconhecido facilmente. Nem o queria, para dizer a verdade. Como estariam a ex-noiva, as pessoas que incumbira de seus negócios? Eram apenas pensamentos fortuitos. Não voltava pela noiva ou pelos negócios, não pretendia cobrar ou exigir nada. Seria insensível por pensar assim?

Pai, o que você me fez fazer? Terei abandonado os que me amavam apenas para encontrá-lo? No que você é melhor do que eles? Terei seu amor quando o encontrar? Quem garante que não sou um órfão e que minha mãe, por piedade, não inventou a história de sua ausência?, pensava. Metade do seu ser, contudo, opinava de maneira diferente. Não havia outra alternativa. Estava condenado à morte em vida, à hipocrisia de uma existência sem sentido, feita de anseios e conversações inúteis, de prazer insaciável e da luta contra a dor e a miséria que caracterizam o espírito humano. De repente, percebera que, em todos aqueles anos, jamais temera qualquer situação de penúria ou perda material. Seu único medo era morrer sem encontrar o pai, sem descobri-lo.

Ao voltar à cidade natal, reconheceu cada lugar, com ou sem modificações. Sabia distinguir as coisas novas que haviam sido acrescentadas desde sua partida. Foi para sua velha casa, vestido como um camponês, a pele tostada e a barba por fazer, com uma sacola de algodão cru a tira-colo. Não tinha mais o porte de outrora, nem preocupava-se com isso. Ao chegar à casa onde fora criado, tocou a campainha. Ninguém veio. Tocou outra vez. Lentamente, passos aproximaram-se da antiga porta de madeira. Apareceu um homem desconhecido, pouco mais jovem do que ele, mas bem vestido.

Quem vive nesta casa, perguntou. Só um antigo membro da família do sr. e sra. tal, respondeu o criado. Por acaso, ouviu falar de um antigo morador desta residência, que se chamava tal? Sim, ouvi. Desapareceu há alguns anos, após haver entregue todos seus negócios e ter deixado uma carta de despedida à noiva, respondeu novamente o homem. E quem vive aqui, atualmente?, perguntou o jovem com aspecto campônio. O sr. tal, pai do jovem que, tempos atrás, abandonou esta casa.

Quase desmaiou. Empalideceu e sentiu o suor escorrer pelo corpo. Como podia ser? Ele, que perambulara anos a fio por lugares onde acreditava que pudesse encontrar algum sinal do pai, o acharia na própria casa? Preciso entrar, disse ao criado. Mas este, recomposto das inúmeras perguntas de que fora alvo, disse-lhe Não. Deixe-me passar, por favor. Este homem é meu pai. Eu sou aquele que, há muitos anos, partiu em busca daquele que hoje mora nesta casa. Sinto muito, não acredito, disse o empregado. Como alguém tão rude como você pode ser filho do sr. tal? Você não corresponde à descrição dele, disse. Por sorte, guardava junto a si a própria fotografia. Veja. O homem olhou a imagem, quase encostando-a na ponta do nariz, e a devolveu. Espere um momento, falou, fechando a porta atrás de si.

Passados cerca de quinze minutos, retornou. Pode entrar, disse o homem, com olhar desconfiado. Atravessou o umbral e penetrou na casa, a mesma que deixara numa madrugada cuja data não podia precisar. Nada mudara. Os móveis pareciam estar pregados aos seus antigos lugares, o corrimão da escada mantinha-se lustroso, os tapetes e quadros permaneciam incólumes. Parecia-lhe que nunca saíra daquela casa, que tudo não passava de um sonho. Talvez fosse, talvez nunca tivesse partido, talvez estivesse apenas dormindo. Tocou o próprio rosto e sentiu a barba que ocultava a face outrora de traços suaves; olhou para as próprias roupas e compreendeu que sim, que estava de volta ao lar depois de muito tempo. Como se despertasse, dirigiu-se com passos firmes ao seu antigo quarto, sua única dormida enquanto vivera naquela casa. Pela porta entreaberta, uma mão firme, sobre a qual incidia uma luz, acenava para que entrasse e finalmente encontrasse a razão de sua vida.