sexta-feira, 15 de junho de 2007

“A função do ser humano é realizar plenamente seu potencial”, diz J.


Até os 60 anos, J. levava uma vida normal. Pai de três filhos adultos e formados, profissional bem sucedido na área de Engenharia, nada aparentava que, ao chegar à chamada terceira idade, J. tomasse uma decisão considerada, no mínimo, inusitada pela família, amigos e conhecidos: abandonar tudo e tornar-se monge. “Eu já tinha essa intenção desde os 30 anos”, contou J., cujo nome, a pedidos, não será revelado.

Há dois anos, J. é monge trapista, ordem mística cristã fundada em 1662, na Europa, cujos fundamentos são a pobreza, a castidade, obediência e estabilidade. Este último voto consiste na promessa do adepto em viver até o fim dos seus dias como membro da ordem. Outra característica marcante do trapismo é o voto de silêncio. Em alguns mosteiros, os monges vivem em permanente retiro e jamais trocam palavras. Vivem em silêncio permanente e em estado de oração.

Os trapistas ficaram conhecidos em todo o mundo principalmente pelo exemplo e obras de Tomas Merthon, o famoso monge-escritor que, nos anos 60, legou obras como “A Montanha dos Sete Patamares”. Merthon foi também um dedicado apóstolo pela paz mundial, tendo se correspondido com personalidades como o Dalai-lama e Martin Luther King.

Por que, sendo um pai de família exemplar e profissional bem-sucedido, o sr. resolveu abandonar tudo e tornar-se monge?

Eu já pensava nisso desde os 30 anos. Sempre tive isso em mente, sem que houvesse uma razão específica. Nunca fui religioso. Veja minha formação: engenheiro, que geralmente é um profissional ultra-racionalista. Só que, à medida em que os anos foram passando, senti que este era meu destino. Mas não podia encará-lo antes de criar meus filhos e estar maduro o bastante para isso.

O que levou o sr. a tomar a decisão de tornar-se um monge trapista?

O trapismo só surgiu depois, quando eu já tinha convicção do que queria. O que me levou a começar o que já estava decidido há muito tempo, foi assistir a morte de um colega de forma inútil e estúpida. Ele se matava pela empresa em que trabalhávamos. Não tinha dia, hora, nada para si mesmo. Corria o tempo todo, descuidava de si e da família, vivia em tensão contínua, como se aquilo ali fosse o centro do universo, a coisa mais importante do mundo. Eu era seu assistente. Um belo dia, ele teve um enfarte fulminante. Em dois dias, já havia um substituto para ele. Todas suas ansiedades, sua busca pelo lucro da empresa acabaram em um segundo. A empresa simplesmente pôs outro em seu lugar. A engrenagem não podia parar. Isso me deprimiu e não consegui mais trabalhar direito, até que o desejo de largar tudo e me tornar monge tornou-se uma meta.

Fui me preparando, avaliando, olhando bem para minha mulher e filhos, até que me decidi. Comecei a freqüentar grupos, pois nunca gostei de religiões formais, onde simplesmente as pessoas vão a um culto, como se fossem a uma festa. Eu queria algo duradouro, permanente, uma comunhão de almas na mesma busca, e achei isso no trapismo.

Para o sr., o ser humano tem uma função neste mundo? Qual é ou qual seria?

Não tenho a menor dúvida que o ser humano tem uma função neste mundo. Do contrário, não estaria aqui. Sua função é realizar plenamente seu potencial. Que potencial é este? Cada um deve descobrir por si mesmo. Geralmente, o potencial de uma pessoa está ligado ao que ela faz, quando se sente feliz e integrada em todos os aspectos de sua vida. Tudo é uma coisa só e esta ‘coisa só’ não é apenas para si e os seus, mas para o mundo todo. Se ela estendesse suas ações para outras pessoas, todas também usufruiriam, de alguma forma, deste mesmo estado de felicidade.

Existem potenciais positivos e outros negativos?

Claro! Ser sapateiro é uma função maravilhosa, se bem exercida...Que beleza há em se produzir um sapato e servir na caminhada dos outros! Por sua vez, a mesma coisa não pode ser dita de alguém que vende armas ou trafica drogas...isso não é um potencial, mas um desvio dele, pois esta ação acarretará na interrupção da trajetória de um semelhante, que não poderá cumprir seu próprio potencial...Compreende a diferença? Ela é bastante clara.

O homem não é como uma flor, que nasce presa ao chão, com um destino inicial que é igual ao seu fim. O ser humano faz a si mesmo enquanto vive; ele cria seu destino até o fim dos seus dias. Não acho que todos devam ser monges ou buscar a santidade. Ao mesmo tempo, também não acho que o destino das pessoas seja terem uma família e viverem apenas para ganhar dinheiro e se reproduzir, até o dia de sua morte.

O sr. pode falar um pouco mais sobre este potencial?

O que chamo de potencial é encontrar a si mesmo naquilo que se faz e naquilo que se é. É sentir que o caminho é sempre ascendente, sem estagnação. Trocando em miúdos, é como se um escritor nunca terminasse sua obra, como se sempre pudesse acrescentar uma página nova e sua criatividade jamais decaísse. É viver em esplendor. E para isso, não é preciso ser famoso, rico ou pobre, ou mesmo seguir o caminho dos pais, dos antepassados. Estas são circunstâncias, instrumentos que podem ser favoráveis ou não para o crescimento do indivíduo. Os bens materiais fazem parte da jornada de um homem, mas não são seu objetivo.

Há pessoas ricas que não conseguem se realizar. Ao mesmo tempo, há pobres que se realizam completamente, alcançam seu objetivo, que só elas mesmas, em seu íntimo, podem saber qual é. É uma bobagem achar que a aceitação do estado de pobreza é argumento de quem não conseguiu ficar rico. Buda era um príncipe, e abandonou tudo para tornar-se um mendigo. Há inúmeros casos de santos e pessoas que abandonam a riqueza para viver uma vida de desapego. E há pobres que vivem como pobres e esta é a sua riqueza, pois não têm o menor ressentimento pelo seu estado, nem se preocupam com ele.

O sr. acredita em Deus?

(Risos) Sim, acredito. Dificilmente alguém abandonaria uma vida estável como a que eu tinha para tornar-se monge, se não acreditasse em Deus ou numa Força Superior, que rege todas as coisas. Mas quando falo em crer em Deus, não estou falando em uma crença mental, como se Deus fosse uma idéia fixa na qual eu pensasse o tempo inteiro. Isso é muito pobre. A verdadeira crença é o conhecimento de Deus dentro do nosso próprio ser. Você vive como se estivesse o tempo inteiro na presença d’Ele. E você O sente, O vive e compreende que isso não é fruto da imaginação ou de auto-sugestão. É um processo de abertura que faz com que você, ainda neste mundo, viva ao mesmo tempo em Outro.

Desculpe, mas não entendi...

É um pouco complicado de explicar, porque Deus não é algo que se entenda com a mente ou que se apalpe como um objeto. Para entendê-Lo, dentro do que é possível, é preciso ir além dos sentidos comuns, da mente e das deduções. É preciso vivenciá-lo. Esta vivência começa com um movimento da própria pessoa no sentido de enxergar o mundo como ele é e como ele se mostra diante de nós. Como posso ver o mundo se o tempo inteiro estou com o pensamento atulhado das minhas preocupações e ansiedades, se o tempo todo só penso naquilo que tenho que fazer, nos filhos, no dinheiro, nas contas para pagar? Ora, desta forma não vamos a lugar algum, mas somos apenas escravos de nossos pensamentos e do que os outros pensam e esperam de nós. Veja que isso é um círculo vicioso, que se fecha, pois todos fazem a mesma coisa, e morrem de medo de romper esta corrente. Quando isso acontece, ainda que por um segundo, um elo da corrente se rompe, e entra uma pequena luz que começa a nos mostrar o mundo como ele é. As ansiedades, os medos, acusações, alegrias, culpas...tudo termina num único lugar: na morte.

A descoberta de nossa finitude, de que vamos mesmo partir, paradoxalmente renova a vida. Fazemos então uma triagem e vamos descartando tudo que nos separa de nossa consciência mais profunda, que, então, começa a nos mostrar coisas que estavam diante de nosso nariz, mas não víamos.

O sr. não acha que sua nova vida é apenas uma fase e que voltará ao que era antes?

(Risos) Não. Eu não deixei nada, na verdade. Meus filhos me amam e minha mulher também. Nada foi perdido. Eu apenas assumi que não quero mais compromissos com o mundo material. Não tenho mais obrigação de ganhar dinheiro, nem nada. Estou sereno em minha decisão e leguei também algo a mais para meus familiares. Além de ter-lhes propiciado uma base material e educacional, minha nova vida os está ajudando a questionar suas próprias (vidas), no sentido de buscarem o que é essencial. Agora, quero me dedicar a um outro mundo, para o qual serei chamado a qualquer momento.

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Livros recomendados

"A Montanha dos Sete Patamares", de Thomas Merthon, editora Vozes
"A Conferência dos Pássaros", de Fariduddine Attar, editora Cultrix
"As Quarenta Questões Sobre a Alma", de Jacob Boehme, Polar Editorial
"Poderes o El Libro que Diviniza" - Dr. Jorge Adoum, obra em espanhol gratuita na Internet. Clique aqui para baixar o livro.

Sites

Thomas Merton Center e International Thomas Merton Society

Mosteiro Trapista no Brasil

Mosteiro onde Merton viveu

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Poesia sufi

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Redução de danos ou inversão de valores?


O Brasil vem assistindo ao apoio quase explícito a uma política estranhamente denominada de “redução de danos”. O atual governo –da esfera municipal à federal- vem dando suporte a entidades que distribuem cartilhas mostrando como ‘cheirar’ cocaína ou usar drogas com menos ‘riscos’. Em cidades do interior de Santa Catarina, a prefeitura provê cachimbos para menores fumarem ‘crack’ nas ruas, alegando que, com isso, se ‘reduzem riscos’. Já no interior de São Paulo ou Minas Gerais, tornou-se corriqueiro ministrar educação sexual em escolas públicas, ensinando crianças de 10 a 12 anos a usarem camisinha e a saberem, nesta idade, como é ‘gostoso transar’.

Agora, a mais nova política de “redução de danos” envolve diretamente mulheres: uma ONG do interior de São Paulo, que se diz “cansada de esperar pela decisão do Congresso”, assume que irá orientar mulheres a interromper a gravidez, disseminando o uso do medicamento misoprostol, utilizado para afecções gástricas, mas também conhecido como um poderoso abortivo. É importante observar que, em todos os casos citados, se estão violando Leis: apologia ao uso de drogas é crime; bem como o incentivo à prática do aborto.

A justificativa é sempre a mesma: trata-se de optar pelo ‘mal menor’. Ensinar a ‘cheirar’ cocaína com tal ou qual instrumento, é menos prejudicial do que ‘cheirar’ com o que houver à mão. Com relação ao aborto, há pelo menos 20 anos se brande a cifra de que anualmente ocorrem 3 milhões de interrupções clandestinas de gestação, sem que qualquer pesquisa séria tenha sido feita por órgãos oficiais (o que seria impossível pela ilegalidade da situação) ou mesmo por alguma ONG com credibilidade na área da saúde. Também o argumento não muda há anos: quando indesejavelmente grávidas, as mulheres ricas ou de classe média procuram clínicas particulares, e as pobres usam agulhas de tricô ou tomam chás abortivos que, muitas vezes, as matarão. Legalizar o aborto, portanto, seria dar igualdade de condições a ricas e pobres. Com relação ao ensino de sexo para crianças, aplica-se o seguinte raciocínio: com a Aids e as DSTs generalizadas, o melhor mesmo é ensinar logo a praticar ‘sexo seguro’.

Percebe-se a falácia destes raciocínios quando se observa que governo e (algumas) ONGs escolhem a última das opções e sempre começam pelo final. Ao invés de tentar ‘reduzir danos’, deveriam ser adotadas políticas de prevenção generalizadas, que pudessem combater o mal pela raiz. Com relação
ao uso de drogas, campanhas maciças mostrando publicamente tudo de nefasto que as envolve deveriam ser veiculadas: desde o camponês explorado e escravizado em países como a Colômbia, passando pelos menores cooptados pelo tráfico em morros e favelas. Não apenas o traficante deveria ser penalizado, mas também o consumidor, que é quem alimenta de dinheiro o mercado da droga e que atua como traficante no seio de seu próprio grupo. É importante que o usuário de drogas, seja pobre ou, como se diz, ‘filhinho de papai’, saiba que é co-responsável pela atual onda de violência. Que receba compreensão e amor para recuperar-se; mas que entenda, também, seu papel na grande cadeia da morte ao usar qualquer droga ilegal.

Quanto ao aborto, ao invés de manter a situação no impasse em que se encontra –isto é, não se libera e também não se lhe coíbe-, métodos contraceptivos deveriam ser difundidos a homens e mulheres em idade e condições reprodutivas, incluindo-se aí vasectomia e esterilização feminina, para quem assim o desejar. Pela Lei brasileira, o aborto só é permitido em situações de anencefalia, estupro e risco de morte da mãe. Se, com ampla divulgação de meios contraceptivos e educação maciça ainda assim uma mulher engravidasse, ela deveria ter apoio do Estado não para eliminar o que, conscientemente, concebeu, mas sim para gerá-lo. Qualquer outra atitude é violar a Lei e cometer um crime. Não é possível que a sociedade seja permanentemente leniente com quem conhece seus direitos e deveres e, ou abusa de uns, ou renega os outros.

Sobre o ensino de práticas sexuais a crianças em escolas, é crime em dobro: primeiro por violar a Lei; depois por expor menores a toda sorte de danos psíquicos. Antecipar a idade sexual das crianças não ajudará a prevenir a Aids ou as DSTs, ao contrário, as deixará ao seu alcance ainda mais rápido, pelo estímulo à promiscuidade. Se preservativos devessem ser mostrados a crianças ou pré-adolescentes, deveriam sê-lo não como algo ‘gostoso’, mas sim dentro de um debate que envolvesse indivíduos que estão em processo de transformação e crescimento.

Sem entrar no debate religioso, mas apenas mantendo o foco nas Leis estabelecidas no Brasil, pode-se fazer muito para melhorar as coisas. Mas, da forma como vem sendo adotada, a tal política de redução de danos fica desmascarada como o que realmente é: uma verdadeira inversão de valores.
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