Até os 60 anos, J. levava uma vida normal. Pai de três filhos adultos e formados, profissional bem sucedido na área de Engenharia, nada aparentava que, ao chegar à chamada terceira idade, J. tomasse uma decisão considerada, no mínimo, inusitada pela família, amigos e conhecidos: abandonar tudo e tornar-se monge. “Eu já tinha essa intenção desde os 30 anos”, contou J., cujo nome, a pedidos, não será revelado.
Há dois anos, J. é monge trapista, ordem mística cristã fundada em 1662, na Europa, cujos fundamentos são a pobreza, a castidade, obediência e estabilidade. Este último voto consiste na promessa do adepto em viver até o fim dos seus dias como membro da ordem. Outra característica marcante do trapismo é o voto de silêncio. Em alguns mosteiros, os monges vivem em permanente retiro e jamais trocam palavras. Vivem em silêncio permanente e em estado de oração.
Os trapistas ficaram conhecidos em todo o mundo principalmente pelo exemplo e obras de Tomas Merthon, o famoso monge-escritor que, nos anos 60, legou obras como “A Montanha dos Sete Patamares”. Merthon foi também um dedicado apóstolo pela paz mundial, tendo se correspondido com personalidades como o Dalai-lama e Martin Luther King.
Por que, sendo um pai de família exemplar e profissional bem-sucedido, o sr. resolveu abandonar tudo e tornar-se monge?
Eu já pensava nisso desde os 30 anos. Sempre tive isso em mente, sem que houvesse uma razão específica. Nunca fui religioso. Veja minha formação: engenheiro, que geralmente é um profissional ultra-racionalista. Só que, à medida em que os anos foram passando, senti que este era meu destino. Mas não podia encará-lo antes de criar meus filhos e estar maduro o bastante para isso.
O que levou o sr. a tomar a decisão de tornar-se um monge trapista?
O trapismo só surgiu depois, quando eu já tinha convicção do que queria. O que me levou a começar o que já estava decidido há muito tempo, foi assistir a morte de um colega de forma inútil e estúpida. Ele se matava pela empresa em que trabalhávamos. Não tinha dia, hora, nada para si mesmo. Corria o tempo todo, descuidava de si e da família, vivia em tensão contínua, como se aquilo ali fosse o centro do universo, a coisa mais importante do mundo. Eu era seu assistente. Um belo dia, ele teve um enfarte fulminante. Em dois dias, já havia um substituto para ele. Todas suas ansiedades, sua busca pelo lucro da empresa acabaram em um segundo. A empresa simplesmente pôs outro em seu lugar. A engrenagem não podia parar. Isso me deprimiu e não consegui mais trabalhar direito, até que o desejo de largar tudo e me tornar monge tornou-se uma meta.
Fui me preparando, avaliando, olhando bem para minha mulher e filhos, até que me decidi. Comecei a freqüentar grupos, pois nunca gostei de religiões formais, onde simplesmente as pessoas vão a um culto, como se fossem a uma festa. Eu queria algo duradouro, permanente, uma comunhão de almas na mesma busca, e achei isso no trapismo.
Para o sr., o ser humano tem uma função neste mundo? Qual é ou qual seria?
Não tenho a menor dúvida que o ser humano tem uma função neste mundo. Do contrário, não estaria aqui. Sua função é realizar plenamente seu potencial. Que potencial é este? Cada um deve descobrir por si mesmo. Geralmente, o potencial de uma pessoa está ligado ao que ela faz, quando se sente feliz e integrada em todos os aspectos de sua vida. Tudo é uma coisa só e esta ‘coisa só’ não é apenas para si e os seus, mas para o mundo todo. Se ela estendesse suas ações para outras pessoas, todas também usufruiriam, de alguma forma, deste mesmo estado de felicidade.
Existem potenciais positivos e outros negativos?
Claro! Ser sapateiro é uma função maravilhosa, se bem exercida...Que beleza há em se produzir um sapato e servir na caminhada dos outros! Por sua vez, a mesma coisa não pode ser dita de alguém que vende armas ou trafica drogas...isso não é um potencial, mas um desvio dele, pois esta ação acarretará na interrupção da trajetória de um semelhante, que não poderá cumprir seu próprio potencial...Compreende a diferença? Ela é bastante clara.
O homem não é como uma flor, que nasce presa ao chão, com um destino inicial que é igual ao seu fim. O ser humano faz a si mesmo enquanto vive; ele cria seu destino até o fim dos seus dias. Não acho que todos devam ser monges ou buscar a santidade. Ao mesmo tempo, também não acho que o destino das pessoas seja terem uma família e viverem apenas para ganhar dinheiro e se reproduzir, até o dia de sua morte.
O sr. pode falar um pouco mais sobre este potencial?
O que chamo de potencial é encontrar a si mesmo naquilo que se faz e naquilo que se é. É sentir que o caminho é sempre ascendente, sem estagnação. Trocando em miúdos, é como se um escritor nunca terminasse sua obra, como se sempre pudesse acrescentar uma página nova e sua criatividade jamais decaísse. É viver em esplendor. E para isso, não é preciso ser famoso, rico ou pobre, ou mesmo seguir o caminho dos pais, dos antepassados. Estas são circunstâncias, instrumentos que podem ser favoráveis ou não para o crescimento do indivíduo. Os bens materiais fazem parte da jornada de um homem, mas não são seu objetivo.
Há pessoas ricas que não conseguem se realizar. Ao mesmo tempo, há pobres que se realizam completamente, alcançam seu objetivo, que só elas mesmas, em seu íntimo, podem saber qual é. É uma bobagem achar que a aceitação do estado de pobreza é argumento de quem não conseguiu ficar rico. Buda era um príncipe, e abandonou tudo para tornar-se um mendigo. Há inúmeros casos de santos e pessoas que abandonam a riqueza para viver uma vida de desapego. E há pobres que vivem como pobres e esta é a sua riqueza, pois não têm o menor ressentimento pelo seu estado, nem se preocupam com ele.
O sr. acredita em Deus?
(Risos) Sim, acredito. Dificilmente alguém abandonaria uma vida estável como a que eu tinha para tornar-se monge, se não acreditasse em Deus ou numa Força Superior, que rege todas as coisas. Mas quando falo em crer em Deus, não estou falando em uma crença mental, como se Deus fosse uma idéia fixa na qual eu pensasse o tempo inteiro. Isso é muito pobre. A verdadeira crença é o conhecimento de Deus dentro do nosso próprio ser. Você vive como se estivesse o tempo inteiro na presença d’Ele. E você O sente, O vive e compreende que isso não é fruto da imaginação ou de auto-sugestão. É um processo de abertura que faz com que você, ainda neste mundo, viva ao mesmo tempo em Outro.
Desculpe, mas não entendi...
É um pouco complicado de explicar, porque Deus não é algo que se entenda com a mente ou que se apalpe como um objeto. Para entendê-Lo, dentro do que é possível, é preciso ir além dos sentidos comuns, da mente e das deduções. É preciso vivenciá-lo. Esta vivência começa com um movimento da própria pessoa no sentido de enxergar o mundo como ele é e como ele se mostra diante de nós. Como posso ver o mundo se o tempo inteiro estou com o pensamento atulhado das minhas preocupações e ansiedades, se o tempo todo só penso naquilo que tenho que fazer, nos filhos, no dinheiro, nas contas para pagar? Ora, desta forma não vamos a lugar algum, mas somos apenas escravos de nossos pensamentos e do que os outros pensam e esperam de nós. Veja que isso é um círculo vicioso, que se fecha, pois todos fazem a mesma coisa, e morrem de medo de romper esta corrente. Quando isso acontece, ainda que por um segundo, um elo da corrente se rompe, e entra uma pequena luz que começa a nos mostrar o mundo como ele é. As ansiedades, os medos, acusações, alegrias, culpas...tudo termina num único lugar: na morte.
A descoberta de nossa finitude, de que vamos mesmo partir, paradoxalmente renova a vida. Fazemos então uma triagem e vamos descartando tudo que nos separa de nossa consciência mais profunda, que, então, começa a nos mostrar coisas que estavam diante de nosso nariz, mas não víamos.
O sr. não acha que sua nova vida é apenas uma fase e que voltará ao que era antes?
(Risos) Não. Eu não deixei nada, na verdade. Meus filhos me amam e minha mulher também. Nada foi perdido. Eu apenas assumi que não quero mais compromissos com o mundo material. Não tenho mais obrigação de ganhar dinheiro, nem nada. Estou sereno em minha decisão e leguei também algo a mais para meus familiares. Além de ter-lhes propiciado uma base material e educacional, minha nova vida os está ajudando a questionar suas próprias (vidas), no sentido de buscarem o que é essencial. Agora, quero me dedicar a um outro mundo, para o qual serei chamado a qualquer momento.
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Livros recomendados
"A Montanha dos Sete Patamares", de Thomas Merthon, editora Vozes
"A Conferência dos Pássaros", de Fariduddine Attar, editora Cultrix
"As Quarenta Questões Sobre a Alma", de Jacob Boehme, Polar Editorial
"Poderes o El Libro que Diviniza" - Dr. Jorge Adoum, obra em espanhol gratuita na Internet. Clique aqui para baixar o livro.
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