terça-feira, 17 de julho de 2007

Brasil é primeiro país da América Latina a ter obra sustentável certificada


O Brasil é o primeiro país da América Latina a ter um prédio ‘ecologicamente correto’, com selo verde reconhecido internacionalmente. A obra, do Banco Real ABN AMRO BANK, localiza-se na Granja Viana, no município de Cotia, na grande São Paulo e está em pleno funcionamento desde janeiro deste ano.

O edifício, de aproximadamente 600m2, conta com vários diferenciais ecológicos, como energia solar fotovoltaica para iluminação da área de auto-atendimento, equipamento para tratamento de esgoto (inclusive bacias sanitárias) e reuso das águas servidas; sistema de aproveitamento de água da chuva; telhado verde. Mais de 50 produtos –conhecidos como ecoprodutos-, que apresentam algum benefício capaz de classificá-los como “amigos do meio ambiente”, foram utilizados na obra, dentre eles tintas e massas corridas naturais sem insumos derivados de petróleo, tubulações sem PVC ou de material reciclado e resinas à base de óleo de mamona, para impermeabilização da fundação do prédio.

Além da excelência em tecnologias e materiais sustentáveis, a primeira construção sustentável do país recebeu há pouco mais de 15 dias uma certificação com validade internacional, conferida por uma entidade baseada nos Estados Unidos, que garante ao mercado o desempenho ambiental da obra.

Para explicar detalhes da obra e sua importância para o mercado da construção civil e para o meio ambiente, o blog Liberdade de Expressão e Cultura realiza uma entrevista inédita com o consultor Márcio Augusto Araújo, do IDHEA – Instituto para o Desenvolvimento da Habitação Ecológica, responsável pela recomendação e orientação no uso de ecoprodutos e tecnologias sustentáveis no prédio do Banco Real.

Liberdade de Expressão e Cultura – O que é uma construção sustentável?

Marcio Augusto Araújo – É um sistema construtivo que planeja todas as intervenções, levando em conta o meio ambiente. Estas intervenções incluem estudos do local (como solo, clima, chuvas, umidade, orientação do sol), de forma a aproveitar o que a própria Natureza oferece.

Com estes dados, é feito o projeto e planejamento da obra, são definidas as melhores abordagens do ponto de vista ambiental, além dos materiais, soluções e tecnologias a serem aplicadas. Define-se também o gerenciamento da construção, de forma que não impacte antes, durante e depois de pronta. Uma construção sustentável segue as diretrizes do conceito de desenvolvimento sustentável, buscando atender as necessidades do usuário atual, preservar o meio ambiente e os recursos naturais e garantir qualidade de vida para as gerações futuras.

LEC – Qual a diferença entre uma casa ecológica e uma casa sustentável?

MAA - Ambas são construções amigas do meio ambiente. Mas há diferenças. Numa casa ecológica, a obra acontece na Natureza, com recursos locais. Usa-se, por exemplo, a terra local para confeccionar blocos (adobe); usa-se mão de obra local; muitas vezes a construção é de tipo intuitiva, sem um projeto preliminar, isto é, cria-se a arquitetura com o próprio processo construtivo, sem projetos e profissionais da área. Este é o caso das construções de terra no Mali (que são maravilhosas!), das habitações indígenas ou mesmo iglus, onde blocos de gelo são usados para construir as casas dos esquimós.

Já numa casa sustentável, a obra é um trabalho multidisciplinar, envolvendo conceitos de arquitetura e engenharia civil, química, antropologia, sociologia, medicina e até mesmo espiritualidade. É uma visão holística da casa como microcosmo (mundo) do indivíduo que a ocupa. Outro dado importante é que construções sustentáveis são urbanas, usam ecoprodutos e tecnologias fabricados em escala industrial, com controle de qualidade, atendendo às normas.
É muito mais importante, hoje, uma casa sustentável do que uma ecológica, pelo fato de que até 2027 mais de 70% da humanidade estarão em grandes cidades. É aí que se deve atuar com mais intensidade.

LEC – O que um edifício desses representa para o meio ambiente?

MAA – É uma verdadeira revolução, na medida em que, se este tipo de construção for adotada pelo mercado, levará indústrias e fornecedores a mudarem seu modo de produção, visando materiais e processos mais limpos. Todos ganharemos.

Os benefícios também abrangem os aspectos de economia e saúde. Quanto mais um prédio investe em sustentabilidade, mais econômico ele se torna em relação a manutenção e gastos com energia, água e saúde do usuário. Se você gera sua própria energia, isso reduz custos e impactos sobre o meio ambiente. Idem com relação à água. Veja algo simples, como coletar e aproveitar a água de chuva, que, numa cidade como São Paulo, em dias de tempestade vai causar enchentes. Com um sistema desses, você economiza no uso da água no edifício para fins não potáveis (Nota do Blog: não se pode beber, cozinhar, nem lavar roupas) e ainda ajuda a evitar enchentes.

LEC - O que uma construção deve fazer para ser considerada sustentável?
MAA - Ela deve funcionar como um organismo vivo. Ela precisa de alimento (água e energia), de saúde (qualidade do ar e do ambiente interno, temperatura, som etc.), de tratar ou eliminar os resíduos que gera, dentre outras funções, para poder ser saudável e feliz. Numa edificação acontece a mesma coisa. Há nove passos para isso, que são os seguintes:
1. Planejamento Sustentável da Obra
2. Aproveitamento passivo dos recursos naturais
3. Eficiência energética
4. Gestão e economia da água
5. Gestão dos resíduos na edificação
6. Qualidade do ar e do ambiente interior
7. Conforto termo-acústico
8. Uso racional de materiais de construção
9. Uso de ecoprodutos e tecnologias sustentáveis

LEC - O que o prédio tem de mais significativo, com relação a materiais e tecnologias?

M
AA - Absolutamente tudo. A obra foi construída de acordo com uma metodologia chamada ACV (Análise de Ciclo de Vida), usando ecoprodutos e tecnologias sustentáveis. Os materiais foram todos estudados, antes que se decidisse seu uso. Por exemplo, os blocos escolhidos para vedação (para fechar as paredes) foram do tipo cerâmico, pois, com eles, se conseguiria manter o edifício com a temperatura interior mais equilibrada, com menos gastos com sistemas de ar condicionado.

Eis uma lista: os tapumes usados na obra foram feitos com placas recicladas a partir de tubos de pasta de dentes; o cimento usado no concreto foi do tipo CPIII, que usa 70% de resíduo de siderurgia em sua composição, resultando em menor uso de matérias-primas virgens e emissão de CO2 (gás carbônico); a areia e a brita eram recicladas de entulho de demolição; os blocos cerâmicos contêm resíduos de celulose da indústria de papel; as placas cimentícias, usadas para fechamento interno de paredes, não têm amianto e têm fibras de PET (poliester extraído das garrafas de refrigerante); a massa corrida e a tinta são do tipo mineral, ou seja, não formam um plástico sobre a parede e permitem que a mesma 'respire', contribuindo para um ambiente interior saudável, sem contaminantes. A obra também contou com controle absoluto de solventes e substâncias tóxicas. Foi feito também um Telhado Verde (N.B.: Na foto acima, o consultor Márcio Araújo orienta a implantação do Telhado Verde), que é uma área de cobertura com vegetação plantada, que serve para climatizar naturalmente o prédio, além de filtrar a água de chuva (que é aproveitada nos vasos sanitários do prédio) e causar um efeito estético e de bem-estar para quem está no banco. Até o piso do estacionamento foi feito com lajotas recicladas.

Com relação a tecnologias, o banco tem energia solar para iluminação da área de auto-atendimento (é o primeiro uso deste gênero no Brasil); no subterrâneo da agência, está instalado um sistema que recolhe todas as águas usadas no prédio, as trata e as devolve em condição de reuso para regar plantas no jardim e lavar a área. As águas da chuva são coletadas em tubulações sem PVC (cuja produção e uso são nocivas ao meio ambiente) e utilizadas nas bacias de descarga dos vasos sanitários. O sistema de ar condicionado é um climatizador, que mantém a umidade relativa do ar segundo os parâmetros adequados para o ser humano (em torno de 60%, segundo a OMS), com ventilação constante do ambiente, com 100% de troca de ar. Todas as làmpadas são de baixo consumo, sem contar os LEDs, que são semicondutores, que iluminam os ambientes com vida útil de 100 mil horas. Na área de paisagismo, além do uso de vegetação do ecossistema local, foram usadas plantas que absorvem toxinas ambientais, utilizando pesquisas da própria Nasa.

Nunca se havia feito nada igual no Brasil. Nos EUA, que é de onde vem a certificação da obra, não existe nada semelhante.

LEC - Como o edifício sustentável pode melhorar a qualidade de vida dos usuários e moradores?

MAA - Em geral as pessoas não se dão conta, mas passamos 2/3 de nossas vidas dentro de algum tipo de edificação. Portanto, é fundamental criar ambientes saudáveis, sem poluentes que possam causar doenças. Isso é básico em obras sustentáveis. Há mesmo indicadores conhecidos como IAQ (Indoor Air Quality/ Qualidade do Ar Interno) ou IEQ (Indoor Environmental Quality/ Qualidade do Meio Ambiente Interno).

A casa é o nosso meio ambiente, enquanto estamos nela. Deve-se criar um ambiente isento da presença de poluentes diversos (como os COVs - compostos orgânicos voláteis), com umidade relativa do ar em torno de 60% (índice determinado pela OMS como ideal para o ser humano), de forma a criar, inclusive, uma proteção para o usuário ou morador em relação à toxicidade do ambiente externo, que é bastante elevada.

LEC - A obra ficou mais cara do que uma construção tradicional?

MAA - Sim. A obra chegou a custar 20% a 30% mais caro do que uma construção comum. Estes custos devem-se, principalmente, às tecnologias sustentáveis implementadas, como o sistema de ar condicionado (que na verdade é um climatizador de ambiente, com um consumo muito menor de energia, além de não desumidificar o ar); a iluminação da área de auto-atendimento por energia solar fotovoltaica; o sistema de tratamento de esgoto doméstico, com reuso das águas tratadas e o aproveitamento da água de chuva. No entanto, se houver um planejamento integrando todas as interfaces sustentáveis da obra desde o princípio, é possível chegar de 1% a 5% de diferencial a mais na obra ou mesmo empatar os custos.

LEC – A obra foi certificada. O que é um sistema de certificação para uma obra sustentável?

MAA – Grosso modo, é um “selo verde” para o prédio. Uma entidade documenta que o edifício tem uma série de características comprovando que ele agride menos o meio ambiente do que um prédio convencional, que é mais saudável e que, por isso, merece um destaque no mercado.

LEC - O Brasil tem uma certificação própria?

MAA - Não, ainda não tem. As empresas certificadoras no país são representantes do sistema norte-americano LEED (da sigla em inglês Liderança em Energia e Design Ambiental), que certificou o prédio do Banco Real. As grandes empresas estão montando uma versão brasileira do Green Building Council (Conselho da Construção Verde), mas, novamente, é um sistema que opera a partir de regras oriundas de países do hemisfério Norte, cuja realidade é muito diferente da nossa.

O maior problema deste sistema que certificou a obra é que ele contempla questões de energia, que é o maior problema das nações do hemisfério Norte, mas não do Brasil, que é um país tropical. No caso brasileiro, é tão importante ou mais contemplar obras que utilizem produtos sustentáveis, uma vez que, em países em desenvolvimento, as questões mais cruciais envolvem a necessidade de geração de empregos e desenvolvimento tecnológico, o que pode ser estimulado por uma demanda da indústria da construção civil por materiais diferenciados.

Sem uma construção sustentável que crie uma verdadeira cadeia, envolvendo fornecedores, fabricantes, prestadores de serviço -ou seja, sem unir todos os elos-, pouco se conseguirá de retorno efetivo para o meio ambiente. É importante estimular um novo mercado, de ecoprodutos e de fornecedores com consciência ambiental. Sem isso, corre-se o risco de trocar figurinhas e de apenas se fazer marketing.

LEC - Qual o melhor sistema de certificação para obras sustentáveis hoje?

MAA - É o australiano Green Star, do Gbcaus (Conselho da Construção Verde da Austrália). Seus parâmetros de avaliação se adequam a nações do hemisfério Sul –casos de Brasil e Austrália. Sua avaliação técnica é bastante profunda e engloba o todo da obra. No sistema norte-americano, praticamente só se contemplam questões de energia e qualidade do ar interior. Ora, se quiséssemos ter usado PVC ou outros materiais cuja produção ocasionam riscos à saúde e meio ambiente, poderíamos tê-lo feito, sem restrições. Se isso não foi feito, é porque, seguindo as recomendações do IDHEA, o Banco Real fincou pé em usar o máximo possível de ecoprodutos e tecnologias sustentáveis.

LEC - Os edifícios verdes são uma tendência no mercado imobiliário?

MAA - No mercado corporativo, os edifícios verdes estão se tornando uma tendência, inclusive porque o discurso ambiental está sendo incorporado pelas grandes empresas, que querem, a todo custo, mostrar que são "ecológicas" (ponha entre aspas, por favor). Hoje, o mercado mundial tem muito mais marketing do que realidade. Apenas economizar energia não resolve o problema da poluição da água, do ar, do solo, dos alimentos e da miséria de bilhões de seres humanos, à margem da economia planetária. Sem incluir uma visão sócio-ambiental, este tipo de construção sustentável corre o risco de se tornar algo para "inglês ver".

A construção civil tem obrigação de melhorar processos e estimular uma indústria de produtos sustentáveis, já que é um dos setores que mais consome matérias-primas e o terceiro maior emissor de CO2 à atmosfera. A produção de cimento sozinha corresponde a 10% de todas as emissões de CO2 do planeta. É absurdamente imenso!. Então, fico muito receoso quando vejo cimenteiras promovendo concursos de “construção sustentável”, sendo que o que elas deveriam fazer seria investir em processos limpos e em produtos que, por exemplo, façam seqüestro de carbono, como o cimento magnesiano que foi desenvolvido na Austrália.

De toda forma, no caso da obra do Banco Real ABN AMRO, posso afirmar que é a construção mais completa e sustentável já edificada no Brasil até hoje e, possivelmente, ainda o será por muito tempo.

LEC - Falamos muito de construções para o mercado corporativo, mas como ficam as construções residenciais sustentáveis?

MAA - Para mim, particularmente, estas obras são fundamentais para a sociedade. Não são as que vão dar mais dinheiro, mas são justamente as construções nas quais as pessoas que moram nas grandes cidades vão viver e ver que, realmente, é possível contribuir com o meio ambiente. E sem sair de casa (risos)!

Na mídia

Jornal "Folha de S. Paulo", edição de 8 de julho/2007 (primeira matéria a sair sobre a obra certificada). Links com acesso apenas para assinantes UOL:




Gbcaus (Green Building Council of Australia)

Defesa do meio ambiente

Greenpeace

Ecoprodutos

Biohaus

Gaiam Realgoods

Tecnologias Sustentáveis

ATA – Associação de Tecnologias Alternativas

Leituras recomendadas

"Agenda 21 para a construção sustentável" - ed. traduzida, escola Politécnica USP

"Arquitetura ecológica" - Ennio Cruz da Costa - editora Edgard Blücher Ltda.

"Eficiência energética na Arquitetura" - Roberto Lamberts, Luciano Dutra, Fernando O.R. Pereira, PW editores, SP

"El efecto de los iones" - Como la electricidad del aire rige la vida y la salud - Fred Soyka e Alan Edmonds, Edaf (Madri)

"Feng-shui - A ciência do paisagismo sagrado na China Antiga" - Ernest J. Eitel, Ground

"Guía de consumo sostenible" - Ma. Antonia García (coordenadora geral), Iberdrola (Espanha)

"La casa y oficina ecológicas - Una guía para construir y comprar hábitats saludables" - Gustavo Garzón, Martínez Roca (Colombia)

"Sustainable Sewerage" - Guidelines for community schemes - R. A. Reed, ITP (Inglaterra)
"Terra - O coração ainda bate (Guia de Conservação Ambiental)" - Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem - editora Tchê

"Una nueva ciencia de la vida" - Rupert Sheldrake, editorial Kairós (Barcelona)