sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A vida secreta nos sonhos

Cerca de 1/3 de nossa vida é passada em estado de inconsciência, melhor dito, de sono. Apesar disso, esse importante período é praticamente ignorado pela ciência moderna como representativo da atividade humana. Considera-se que, enquanto dorme, a pessoa não faz nada de útil. O sono é apenas o momento em que o corpo repousa para recuperar energias. Contudo, este ‘não-lugar’ onde o homem permanece oito horas por dia é palco de uma atividade intensa: o sonho.

Na cultura ocidental moderna, foi o pai da psicanálise, Sigmund Freud, quem iniciou o estudo dos sonhos, vinculando-os a complexos, medos e principalmente à sexualidade. Já seu discípulo e quase antagonista, Carl Gustav Jung, percebia os sonhos como um mundo mítico, mitológico e arquetípico, que poderia vir à tona trazendo conhecimentos ancestrais, anteriores à própria existência do sonhador. A esse fenômeno o psicanalista suíço dava o nome de ‘inconsciente coletivo’.

Na literatura e nas artes, o sonho ganhou destaque com o surrealismo, movimento deflagrado pelo poeta francês André Breton, em 1924. Até então, representações de sonhos e pesadelos podiam ser encontrados nas pinturas de Peter Brueghel, Hyeronimus Bosch e Goya ou em passagens eventuais da literatura. Com o surrealismo, porém, o sonho passa da condição de elemento casual na arte para tornar-se um método para a construção da própria obra.

Com base nas descobertas psicanalíticas, o surrealismo introduz o conceito de "automatismo psíquico" (fluxo ininterrupto da linguagem) para libertar o conteúdo onírico da alma, fundindo real e imaginário, para que o artista se expresse sem travas ou restrições, com seus claros e escuros. Os sonhos se tornam matéria-prima para a criação artística.

A partir de 1926, o surrealismo invade a arte. O cinema (com “Um cão andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dali), a literatura, o teatro (“Assim que Passem Cinco Anos”, de Garcia Lorca), a poesia (Lorca, Aleixandre, Alberti, Octavio Paz, René Char, Breton, Neruda, Dylan Thomas, Murilo Mendes), a pintura (com Dali, Max Ernst, Magritte, Miró, Picasso, Wilfredo Lam, Ismael Nery), a escultura, mesmo a comédia de televisão passam a receber influência –ainda que indireta e diluída- da linguagem onírica. Hoje, qualquer clipe de música traz imagens de cunho surrealista. A própria palavra tornou-se sinônimo de uma situação impossível, que ocorre abruptamente no cotidiano.

Um dos exemplos pitorescos dessa visão está numa anedota sobre o poeta surrealista francês Saint Paul Roux, que, ao deitar-se para dormir, pendurava do lado de fora da porta um cartaz onde estava escrito: “Poeta trabalhando”.

Os sonhos e as religiões

Se a arte só oficializou o sonho como protagonista da linguagem a partir do surrealismo, o mesmo não se pode dizer das religiões, onde sempre teve destaque. Para as religiões, o sonho representa a continuidade da vida do eu num universo sem matéria (o sono), para o qual se vai e vem diariamente.

Na interpretação psicanalítica os sonhos são o resultado de desejos e pulsões inconscientes. Mas, na visão espiritualista, o sonho representa a comunicação do mundo sutil com o homem. É através dele que se recebem presságios (como entre os gregos politeístas), profecias (como com o monoteísta José, no Egito, com a interpretação dos sonhos do faraó), revelações e intuições (como entre os índios hopi, animistas).

O sonho é a consciência desperta do eu dentro do mundo do sono (que os antigos poetas chamavam de “pequena morte”). Assim como no estado de vigília pode-se levar uma vida fragmentada ou mais consciente, também durante os sonhos pode-se ter mais ou menos clareza. Há diversos tipos de sonhos, desde aqueles que parecem não ter sentido algum para a pessoa, até aqueles que são nítidos e que trazem, após o despertar, uma mensagem específica ou a sensação de experiência vivida.

Os sonhos e seu conteúdo variam com a qualidade da vida interior que o indivíduo (o “sonhador”) leva em seu dia a dia. Pessoas que vivem apenas para seus afazeres e interesses materiais, sem um olhar transcendente, em geral têm sonhos dispersos, desconexos, sem relação aparente com nada. Estes quase sempre são esquecidos, tão logo se desperte. Às vezes, sequer há a lembrança de se haver sonhado.

Há sonhos pesados, terríveis –chamados pesadelos- que podem tanto ser o efeito do desgaste corporal e psíquico sobre o eu, como podem simbolizar medos internos e ocultos. Mas podem, também, ser o meio pelo qual o eu profundo procura comunicar algo de relevante à pessoa, na forma de imagens e sensações que causam transtorno.

Porém, para quem reconhece interiormente a existência de uma realidade espiritual, e que pauta sua vida não apenas em satisfazer suas necessidades materiais, mas em servir ao semelhante, com plena consciência de que a morte pode chegar a qualquer momento, o mundo dos sonhos não é mais um mundo sem sentido ou com sentido oculto. Ele se torna uma porta para um plano maior, onde o eu é ensinado e preparado, recebendo orientações de cunho moral, material, psicológico e espiritual.

O grande mestre e sheikh sufi (muçulmano) Muzaffer Ozaki, da ordem Halveti Jerrahi, dizia que (...) “ao dormir, a alma abandona o corpo, mas sem perder sua conexão com ele, como a luz que sai de uma lanterna. Essa luz se estende até a tela divina, onde ficam registradas as anotações que lhe dizem respeito. Ao despertar, a luz da alma volta ao corpo, como quando se desliga uma lanterna. Por meio da extensão da alma, o sonhador pode perceber um nível de conhecimento que se encontra além de seu domínio, no âmbito do divino.”

“(...) Os símbolos e imagens dos sonhos são como hieróglifos que podem ser lidos por pessoas experientes. Mas estes símbolos mudam de situação para situação, de pessoa para pessoa, de alma para alma. (...)

Nunca se deveria contar os sonhos a alguém que tem o hábito de falar mal dos outros. Eles só devem ser contados para aquelas pessoas cujas bocas estão limpas.”

Uma narrativa do sheikh Muzzafer Ozak

“Um dervixe que vivia no campo, longe da cidade onde seu mestre morava, teve um sonho. Sentia que era um sonho importante e que devia contá-lo a seu mestre imediatamente. Ele sonhara que seu corpo inchava como se fosse uma mulher grávida. Então, saía uma serpente de sua barriga e seu corpo voltava ao tamanho normal.

Como estava muito ocupado para visitar seu mestre, o dervixe chamou um de seus empregados de confiança. Contou-lhe o sonho e mandou-o para a cidade, para que procurasse e contasse ao seu mestre. O criado foi orientado para que não contasse o sonho a mais ninguém, e que até mesmo evitasse pensar nele. O dervixe sabia que era muito importante revelar seus sonhos apenas àquela pessoa que pudesse interpretá-lo.

O empregado partiu imediatamente à cidade. Pelo caminho, encontrou um conhecido que tinha fama de linguarudo. Este homem lhe perguntou o que estava fazendo ali e o criado respondeu que ia até a cidade. “O que você vai fazer por lá?”, perguntou o linguarudo.

O empregado respondeu: “Tenho que levar uma mensagem da parte de meu senhor.”

“Que mensagem?”

“É confidencial.”

O homem continuou pressionando o empregado para que desse mais detalhes até que, finalmente, este contou que estava indo ver o mestre de seu amo, para contar-lhe o sonho que havia tido na noite anterior

O linguarudo começou, então, a perguntar-lhe de que se tratava o sonho. No começo, o empregado se negou a contar, mas finalmente acabou por ceder. “Meu amo sonhou que inchava”.

Sem esperar o fim da narrativa, o linguarudo começou a rir e disse: “Então ele estourou, como um balão furado por uma agulha”. Tão logo satisfez sua curiosidade, foi embora.

O criado apressou-se a chegar á cidade, indo diretamente à casa do mestre. Quando foi recebido, disse: “Meu senhor teve um sonho na noite passada e roga que o senhor o interprete. Ele sonhou que seu corpo inchava...”

“Páre!”, disse de repente o mestre. “O sonho já foi interpretado. Não há mais nada que eu possa fazer. Volte para sua casa e pergunte por seu patrão.”

Quando o empregado voltou para casa, descobriu que seu senhor havia morrido durante sua ausência. Algumas horas depois que o criado havia saído, o corpo do patrão começou a inchar, até que finalmente faleceu.”

Leituras recomendadas

O Amor é o Vinho (em espanhol) Sheikh Muzzafer Ozak Al-Jerrahi