segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Uma parábola chinesa – adaptada a partir da narrativa de Hermann Hesse


Um ancião chamado Chunglang tinha uma pequena propriedade na montanha. Aconteceu um dia que um de seus cavalos fugiu e seus vizinhos vieram oferecer-lhe sua solidariedade. O ancião, imperturbável, disse então:

-Talvez isso não tenha sido uma desgraça!

E eis que vários dias depois, o cavalo regressou e trouxe consigo toda uma manada de cavalos selvagens. De novo vieram os vizinhos, desta vez para felicitá-lo pela boa sorte. Mas o velho da montanha lhes disse:

—Talvez isso não tenha sido um acontecimento afortunado!

Com tantos cavalos, o filho do velho chinês tornou-se aficionado por montá-los, até que um dia caiu de um deles e quebrou a perna. Outra vez, os vizinhos foram visitá-lo para oferecer-lhe sua solidariedade e novamente o sábio lhes respondeu:

-Talvez isso não tenha sido uma desgraça!

No ano seguinte, vieram até as montanhas os mensageiros dos “Cajados Compridos”. Vieram para recrutar jovens fortes, para exercer a função de mensageiros do imperador e para carregar sua liteira. O filho do ancião, que ainda se encontrava com a perna quebrada, não foi levado.

Chunglang sorria.

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Hermann Hesse

Um dos maiores escritores de todos os tempos, o alemão Hermann Hesse (1877-1962) é um caso à parte na literatura ocidental. Filho de pastores cristãos que pregaram o Evangelho na Índia, Hesse foi não apenas um escritor que dominou com maestria seu ofício, mas um indivíduo carismático cuja sabedoria levou milhares de jovens, nos anos 60, a aclamar sua obra como um libelo contra a sociedade consumista e mecanicista. Seu nome, durante as famosas rebeliões estudantis de 68, tornou-se sinônimo de luta contra o conformismo e o materialismo e da busca pela paz interior e exterior.

Desde o início, com "Peter Camenzind", a obra de Hesse espelha o reconhecimento da permanente dualidade que habita o ser humano e a necessidade de superá-la pelo reencontro consigo mesmo, rumo à harmonia e à unidade. "Demian", um clássico psicológico do chamado 'romance de formação', mostra -ao contrário de mediocridades comerciais como Harry Potter- o envolvimento da personagem principal com o misterioso Max Demian, vinculado à esotérica ordem de Abraxas. O comovente "Sidarta", uma releitura livre da vida do criador do budismo e de doutrinas da Antiga Índia, é talvez o livro mais espiritualizado de Hermann Hesse, narrando a trajetória de um jovem brâmane que busca libertar-se do próprio eu e do mundo das aparências.

Outra obra fundamental do escritor alemão foi "O Lobo da Estepe", responsável por levar a brasileira de origem ucraniana Clarice Lispector, com apenas 17 anos, a tomar a decisão de tornar-se escritora. O livro também deu origem a uma das principais bandas de rock dos anos 60-70, The Steppenwolf, cuja música "Born to be wild" fez parte da trilha sonora do maior clássico do cinema da contracultura, "Easy Rider". "O Lobo da Estepe" conta a história do alter ego de Hermann Hesse, Harry Haller, que vive entre a loucura e a genialidade. Um dos capítulos do livro intitula-se, justamente, "Só para loucos".

À medida em que envelhecia, Hesse aproximava sua escrita da mais abstrata e harmoniosa das artes: a Música. Amante de Mozart, duas de suas obras de maturidade mostram a profunda conexão entre música e espiritualidade: "Viagem ao Oriente" e "O Jogo das Contas de Vidro". Este último é considerado, junto com "O Processo", de Franz Kafka, e "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, o melhor romance alemão do século 20. "O Jogo das Contas de Vidro" (ou "O Jogo de Avelórios"), de 1943, é também a síntese hesseana na direção de uma utopia que reúna tanto as necessidades mundanas do homem (de jogar e divertir-se), como as espirituais (de encontrar a harmonia e viver em busca da alma e da perfeição interior). Novamente, a obra é recheada de referências às filosofias indianas. Em 1946, Hesse ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Além de grande escritor, Hermann Hesse foi um poeta das imensidões interiores do ser humano, à semelhança de seus amados conterrâneos Johan W. von Goethe, Frederich Hoelderlin e Rainer Maria Rilke. Morreu dormindo, no dia 9 de agosto de 1962.

Sem consolo

Ao mundo primitivo
não conduzem os caminhos;
nossa alma não se consola
com miríades de estrelas,
nem com rios, bosques e mares.
Nem se encontra uma árvore, rio ou animal,
que penetrem o coração.
Não encontrarás consolo,
Senão entre teus semelhantes.


Livros online

O lobo da estepe e Sidarta (em espanhol)

Videos relacionados

Hermann Hesse

Easy Rider - Born to be wild

13 comentários:

Anônimo disse...

Amigas e amigos,

uma historieta desse maravilhoso escritor que foi Hermann Hesse. Recomendo os videos e o link em espanhol, para quem (ainda) não leu Sidarta e Lobo da Estepe. Há cerca de 20 anos, leio pelo menos uma vez ao ano Sidarta. E sempre encontro novos significados; sempre me emociono. Este livro é a prova viva de que uma obra feita com amor é inesgotável.

Um abraço fraterno!

Anônimo disse...

Aqui há mais contos de Hesse:

http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/ale/hesse/hh.htm

Antes que me esqueça: o conto mais maravilhoso que já li em minha vida é de Hermann Hesse e chama-se "Augusto". Encontra-se no livro "Contos", publicado pela editora Civilização Brasileira, há muitos anos.

regina disse...

Jakob,
Nada é totalmente mau ou totalmente bom, isso é o que concluo dessa parábola.
Mas uma coisa é certa, sempre dá para ficar pior.
Desta vez você nos traz um escritor que é uma unanimidade, Quem não leu Sidarta? Quem não gostou?
Mas como sempre você trouxe novas informações, pelo menos para mim.
Não sabia que Born to be Wild, Easy Ryder, e Hermann Hesse, O lobo da estepe, são todos conectados.
Não sabia, agora vou verificar suas recomendações, video e esse conto Augusto que você recomenda como maravilhoso.
Obrigada.

Anônimo disse...

Olá, Regina

Hermann Hesse foi um gigante das letras e do espírito humano. Sua literatura não é descartável, nem de entretenimento.

Sobre a parábola, creio que ela traz, também, a mensagem de que há pessoas que olham sempre além dos fatos bons e maus que as cercam. Existe uma tendência de se achar sempre que o bom é sinônimo de tudo estar dando certo e de "Deus estar do nosso lado". E de o oposto, as coisas ruins, serem sinônimo de fracasso e de que "Deus está descontente conosco". A narrativa mostra que nem sempre é assim. Como dizem os sábios rosacruzes, "erros são formas diferentes de fazermos as coisas certas."

Um abraço fraterno

Anônimo disse...

A parábola nos faz refletir sobre os acontecimentos notáveis em nossas vidas e a palavra DESTINO ganha força.
Existe mesmo um destino traçado, ou nossas histórias são feitas ao acaso?
O texto nos ajuda a pensar sobre isso.

Parabéns Ibrahim por mais este excelente post!

Abração do amigo!

Anônimo disse...

Walid,

a crença num destino pré-determinado contraria o próprio livre-arbítrio, que é a capacidade de agir inclusive contra nós mesmos. Creio que somos artífices de nossas próprias vidas, mas nenhum ato é desligado de outros, sem consequências. Ou seja: somos responsáveis por tudo que fazemos -embora, no caso de erros, quedas, maldades- sempre haja atenuantes da parte dAquele que é o Juiz de todas as ações. Por isso Ele é chamado também de O Mais Clemente, O Mais Misericordioso.

É evidente que ter livre-arbítrio não exclui as condicionantes que nos cercam, como a família, condição social, grupo ao qual pertencemos, país, língua etc. Isso INFLUENCIA, mas não necessariamente é determinante, seja para o bem ou para o mal.

Creio, meu caro Walid, como muitas outras pessoas, que o ser humano é um ser pendurado entre dois mundos: o material e o sutil. Este segundo mundo, que é invisível aos nossos olhos, está subdividido em diversos outros, dos quais recebemos muitas influências. Isso que estou falando não é esotérico. É físico. Sofremos influências do cosmos, através de ondas eletromagnéticas; também sofremos influências de emanações telúricas, a partir do solo. Tudo isso é aparentemente imperceptível, mas influencia nossos estados de ânimo, os quais, quando a pessoa não tem muita consciência ou contato consigo mesma, pode ser determinante em muitos aspectos de sua vida.

Ou seja: mais do que um destino, todo ser humano nasce com um potencial a realizar. Realizá-lo é cumprir seu 'destino' ou missão. Não realizá-lo é fazer com que seu verdadeiro destino, que é a realização de seu pleno potencial, seja cumprido.

Abraço fraterno

Anônimo disse...

Jakob

Não possuo conhecimentos suficientes para definir Hesse. Talvez, mesmo que tivesse, não conseguiria. E pensar que fiquei tanto tempo sem conhecer este autor.

Quando li o primeiro texto de Hesse, o tratado do lobo da estepe, identifiquei-me à primeira lida.

Curiosamente este texto me foi enviado por um desconhecido.

Há um tempo não muito distante, uns tres anos, recebia uns e-mails de um remetente denominado Lautimeria Chaluminae, é o nome científico do Celacanto, o fóssil vivo, este personagem enviava textos de intelectuais,entre eles Noam Chomsky, e também, se não me falha a memória, de própria autoria. Eram textos densos e críticos a respeito de nossa sociedade moderna e outros temas.

A uma certa altura passei a responder e comentar os textos, e numa dessas trocas de idéias ele me passou o tratado do lobo da estepe.

É desnecessário falar que gostei, o estilo de um escritor é um diferencial mas o conteúdo demonstra a riqueza de uma mente rara.

Os ensinamentos de hesse, baseado em uma cultura ampla, inclusive a oriental milenar, para nossa "moderna" sociedade ocidental, são revolucionários.

Um trecho que considero muito interessante é o que tece considerações sobre o burguês, "que tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas", que quer aproximar-se de Deus, mas não abre mão de seu eu, que conserva como a parte mais importante de sua vida.

Algo que me surpreendeu, no texto, em relação ao autor, é o fato de, em uma primeira leitura, parecer que este prefere o autoritárismo à democracia, quando diz:

"O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocaram em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições."

Este trecho, a princípio, vai de encontro com o que sempre considerei como inquestionável, a democracia, mas no fundo suscita questionamentos sobre qual seria o melhor sistema de governo, ou mesmo se haveria a necessidade de haver um sistema, se houvesse desapego do eu e responsabilidade social.

O segundo texto que li, o Sidarta, me foi indicado por aquela não menos incrível pessoa que responde pela alcunha de Jakob Ibrahim.

Sidarta é um livro maravilhoso, é daqueles livros que recomendo a todos, encerra uma sabedoria de uma utilidade que vai além da simples curiosidade, do entretenimento, considero este aprendizado uma necessidade pessoal e social,entrar em contato com um conhecimento evoluido, que transcende a nossa animalidade, um elemento de evolução para a humanidade.
Uma simples leitura pode ter o efeito de lançar idéias positivas no subconsciente, idéias que sempre, de alguma forma ou de outra podem atuar incorporando-se em graus variados à nossa conduta e mentalidade.

colo abaixo um trecho do Tratado para quem não conhece ter uma idéia da qualidade do autor.

Abração


" "burguês", como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares de opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre amb os, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao ascetismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também se entregar ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocaram em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições."

Movimiento Argenlibre disse...

Saludos desde el Movimiento Argenlibre
argenlibre.blogspot.com

Anônimo disse...

Olá, Rogério

grato pelas palavras, meu amigo. Todos os livros de Hesse estão impregnados pelo tema da dualidade: Narciso e Goldmund; Sidarta e Govinda; Klein e Wagner, e tantos outros. Sempre duas personagens que são as duas personas/pessoas/máscaras que habitavam o próprio autor.

Isso está fortemente marcado no último encontro ainda em vida entre Sidarta e Govinda, em 'Sidarta'.

O último encontro -ou seja, o derradeiro instante antes da morte em que o mundo e seus fenômenos são vistos como entidades separadas- torna-se o começo da Unidade quando Govinda dá um beijo na testa (simbolizando o amor) de Sidarta e, a partir de então, compreende SEM PALAVRAS a inextricável dança dos opostos, da miséria e da felicidade; das lágrimas e do gozo; da vida e da morte. Simplesmente maravilhoso. Quantas vezes chorei ao ler este final!

Argenlibre,

obrigado pela presença. Saludos brasileros!

Anônimo disse...

Caríssimo amigo Jakob,

demorou a troca de "post" mas valeu esperar. Estupendo!

Entretanto, as complicações cotidianas têm impedido minha presença aqui. Por esse mesmo motivo, hoje serei breve. Se Deus quiser, voltarei depois.

Demian foi o primeiro livro do Hesse que li, aos 15 anos.

Marcou-me profundamente.

A ave sai do ovo
O ovo é o mundo
Quem quiser nascer
Tem que destruir um mundo

Depois vieram O lobo da estepe, Sidarta, O jogo das contas de vidro...

Literatura sublime!

Obrigado, amigo JI, por tantas belas palavras. Sem dúvida, alguma vez gostaria de conhecê-lo ao sair daqui. Estive passando parte do verão nessa ilhota e espero voltar logo a Pindorama.tinyurl.com/2ggmff

Anônimo disse...

Vidal,

grato pelas palavras. Hesse também me marcou profundamente. Ele e Rilke foram influências muito fortes em minha vida, na adolescência e ainda hoje.

Hesse, Rilke e Jung -todos alemães-merecem um estudo em conjunto. Eles conduzem seus leitores às portas da espiritualidade. Curiosamente, nenhum dos três atravessou esta porta. Para terem conseguido atravessá-la, teriam de ter abandonado toda sua fama, nome etc.

Considero Hesse o que de mais sublime a literatura ocidental produziu, mantendo-se nos limites da literatura. Ao ultrapassar esta fronteira, deixa de ser literatura, merecendo 'outro' nome. Como chamaríamos a prosa de Jacob Boehme; de Angelus Silesius; de Mestre Eckart; de Ibn Arabi; de Rumi; de Fariddudine Attar? 'Literatura'? Talvez...se considerarmos literatura como sendo um conjunto de textos destinados a entreter, dar prazer, ensinar e despertar a imaginação...Mas quem disse que Rumi é imaginação? Ou que seu objetivo é 'dar prazer'?

Hesse conduz à necessidade de despertar. Rumi, Ibn Arabi, Boehme conduzem ao despertar. Mas Aquele que desperta, está muito além das palavras que podem ser contidas nos livros. Para despertar, os livros devem ser deixados de lado e o aprendizado deve vir de uma região silenciosa, onde só um som vibra.

Quem quiser nascer
tem que destruir um mundo

Abraço fraterno

Anônimo disse...

Olá Jakob e amigos do blog,

Hermann Hesse, foi para minha geração um primeiro passo na caminhada por respostas internas.

Seus contos nos conduziram muitas vezes a lembranças em outros momentos do círculo eterno da vida.

Bem lembrado o Demian, o Sidarta, e O Lobo da estepe.

Quanto ao Easy Rider,c/ o grupo Stepenwolf, o qual eu era fã..não retrata mais do que apenas o título do livro de Hesse, eram um grupo de protesto e contestação na época.

Os videos me levaram a muitos anos atrás na minha adolescencia.

abraços a todos, e até um dia desses...

Unknown disse...

Olá, gostaria que vc postasse o conto completo Augusto do Hermann Hesse. Obrigada